quarta-feira, 17 de março de 2010

A luz da noite

"Quando a cidade dorme a pixação escorre por suas veias de concreto"

A fotografia é na sua mais pura essência um fazer documental. Uma interpretação subjetiva do mundo em que se vive.

Talvez seja por isso que dois séculos após o registro da primeira fotografia de que se tem notícia - feita no ano de 1826, pelo francês Joseph Nicéphore - e dezenas de ramificações surgidas a partir da sua criação (jornalística, publicitária, social, entre outras), especialmente na era moderna, nenhuma dessas atribuições tenha alcançado a verdadeira pureza pela qual o produto final de um registro feito através de uma câmera escura realmente emergiu, a documental.

Munidos de um tema, uma câmera, disposição e uma sensibilidade apurada, nomes como Sebastião Salgado, Lewis Hine, Alec Soth, Benedito Junqueira Duarte, Paul Strand, Alfred Stieglitz, Dorothea Lange, Walker Evans, Arthur Rothstein, Ben Shahn, Russel Lee, Marion Wollcott, Gordon Parks, só para ficar em alguns, encantaram o mundo com uma percepção estética voltada para a utilidade da imagem e evidente preocupação em apresentar questões sociais na esperança de verem suas produções na pauta das discussões da sociedade.

Munidos de uma provocativa atitude diante dos fatos, fizeram da documentação um gênero nobre dentro da fotografia. Conhecedores dos meandros da caixa preta (nome que o filósofo tcheco Vilém Flusser, autor do clássico estudo: “Filosofia da Caixa Preta – elementos para uma futura filosofia da fotografia”, utilizou para definir a máquina que produz a imagem técnica), subverteram o fazer fotográfico, não pelo fato de inserirem uma informação não prevista pelo aparelho, mas sim em razão do discurso embutido nos trabalhos por eles desenvolvidos.


Utilizam com propriedade o conhecimento que possuem da câmera operando-a nas brechas do programa, sem que para isso precisem romper uma matriz codificada ou subverter os modelos instituídos. Ao contrário, brincam com que lhes é imposto pela indústria e assim aprofundam-se no diálogo com as linhas do ambiente apresentado.
Fotógrafos desta estirpe produzem não apenas fotografias, mas verdadeiras obras de arte que andam paralelamente aos conceitos estabelecidos pela teoria da Fotografia Expandida (termologia que tem como base teórica os textos do crítico de arte norte-americano Roasalind Krauss e do teórico Gene Youngblood, e cuja ênfase está centrada no processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista na produção da fotografia), já que oferecem à imagem final um caráter perturbador.

Choque Fotos, pseudônimo de um jovem e audacioso fotógrafo paulistano que desenvolve trabalhos sem revelar a verdadeira identidade, realizou entre os anos de 2007 e 2008 um interessante ensaio documental sobre a pixação na cidade de São Paulo.
Neste trabalho, intitulado Pixação – SP, discurso e imagem andam juntos, dialogando em torno de um tema áspero e polêmico. Na esteira dos bons fotógrafos, que literalmente entregam-se ao projeto a ser desenvolvido, Choque (que em 2009 faturou um dos troféus de fotógrafo revelação oferecido pela revista Clix, dentro do prêmio “Melhores da Fotografia”) transveste-se de pixador, passando de coadjuvante a uma constante testemunha dos fatos. Ao doar-se por completo, o fotógrafo é absorvido pelos meandros do movimento onde escolheu transitar e, assim, como um deles, realiza um ensaio livre, autoral e de tirar o fôlego.
Com a pele de pixador confortável em seu corpo, Choque brinca com a máquina fotográfica fazendo-a agir conforme a sua intenção.

Em suas mãos, a madrugada ganha cores e movimento. Esnobando a teoria de que a fotografia na contemporaneidade não está mais interessada em “apenas” flagrar um instante no tempo, ele mostra como, a margem da lei, um dos mais atuantes e marginalizados movimentos da cidade de São Paulo se materializa pelos muros e avenidas da capital.
Choque utiliza a fotografia como pretexto para por o dedo na ferida e colocar em pauta uma questão que assola 10 em cada 10 grandes metrópoles mundiais, hoje tomadas por rabiscos e inscrições aparentemente desconexas. Para isso usa a cidade de São Paulo, famosa pelo volume de pixações que escorrem em suas veias de concreto, como pano de fundo, e os pixadores paulistanos como protagonistas de um vandalismo (aparentemente) sem causa.
Choque torna belo o que para muitos é trivial, mostrando que é muito mais do que um simples apertador de botão ou escravo de máquinas que nos impõem programas e roteiros pré-estabelecidos. Sua criação está focada em simples acontecimentos cotidianos (como foto-jornalista que é), mas que em seus dedos ganham vida e ineditismo.
Em Pixação – SP, com seu espírito aventureiro aguçado, ele ignora os perigos da noite paulistana e passa a ter a madrugada como companheira. A cidade que não pára, quando capturada pela sua lente, de ponta cabeça da sacada de um apartamento, se silencia. Só se vêm vultos. A rua agora é sua, ou melhor, deles. O desafiador projeto, ainda em curso, revela com beleza e cores o poder e a força contraventora dos caligrafistas urbanos do século XXI.
Escuras e opacas por vezes, como a madrugada se mostra, as imagens revelam o movimento (quase) como ele é. Se por um lado faltam as drogas, as bebidas e o processo de preparação e encorajamento que o “role” (quase sempre) tem, por outro, as fotos nos transportam para os mais impróprios caminhos que a cidade oferece.

Ora estamos com frio na barriga escalando prédios como o homem-aranha ou pendurados em janelas como gatos vira-latas, ora estamos aliviados pela pixação terminada e a missão concluída.

O impacto e a precisão do ensaio são tão intensos que geram mais discussões do que as milhares de paredes pixadas que vemos por aí.

Mais do que dialogar com seus pares ou, quando muito, provocar a ira ou admiração de um ou outro gato pingado, como os pixadores no máximo conseguem fazer, Choque, em Pixação – SP, avança uma casa nos quesitos visibilidade e utilização não autorizada do espaço urbano para disseminação de manifestações que transitam a margem da lei.

Com cliques precisos, o fotógrafo quase que faz uma apologia ao movimento, tamanha profundidade com que registra o que na realidade é sombrio e perigoso. É como se realmente estivéssemos ali, com tinta, spray e um rolinho na mão. Isso é arte.

Jogado o balde de tinta no rosto da sociedade, agora resta saber quem vai fugir e quem vai encarar.


MAIS INFO:

PIXAÇÃO SP
www.flickr.com/photos/choquephotos


LIVROS RELACIONADOS

“Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”
Vilém Flusser
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

“A Fotografia Expandida”
Rubens Fernandes Junior, tese de doutorado. PUC-SP, 2002 (Cosac Naify, prelo)