“Geraldo Filme e a Tradição do Bexiga”
Tradição (Vai no Bexiga pra Ver)
Letra composta por Geraldo Filme, segundo registros, entre o final dos anos 60 e o início da década de 70.
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Quem nunca viu o samba amanhecer
vai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga pra ver
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O samba não levanta mais poeira
Asfalto hoje cobriu o nosso chão
Lembrança eu tenho da Saracura
Saudade tenho do nosso cordão
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Bexiga hoje é só arranha-céu
e não se vê mais a luz da Lua
mas o Vai-Vai está firme no pedaço
é tradição e o samba continua.
Geraldo Filme e a Tradição do Bexiga
Nem tão inovador quanto Adoniran Barbosa e seu samba carregado de humor e gírias urbanas. Nem mesmo sincopado como o catedrático Germano Mathias O swing, também não lembra o balanço de Oswaldinho da Cuíca. Contudo, a singularidade do trabalho musical de Geraldo Filme, cravada no âmago das tradições africanas, inspirada nos jogadores de tiririca (dança semelhante aos movimentos da Capoeira) do centro de São Paulo e no canto dos escravos nas lavouras de cana-de-açúcar e café, tornam o nome deste misto de compositor, historiador e intérprete, fundamental para a compreensão do processo que consolidou o samba e o carnaval paulista na primeira metade do século XX.
A afirmação, sustentada, entre outros, pelos depoimentos de estudiosos e batuqueiros da antiga (entre eles Wilson de Moraes, Plínio Marcos, Germano Mathias, Thobias da Vai-Vai e o próprio Oswaldinho da Cuíca – conforme mostra o documentário “Geraldo Filme”, 1998, do diretor Carlos Cortez), que apontam Geraldão (artista desconhecido do grande público e cuja obra limita-se a apenas dois discos gravados: um solo e o outro em parceria com os sambistas Doca e Clementina de Jesus) como o responsável por estabelecer um elo entre o samba rural nascido nas lavouras de café e cana-de-açúcar do Vale do Paraíba, e o que se consolidaria, em meados dos anos 30, como o samba urbano da cidade de São Paulo.
Negro, por parte de pai e mãe, Geraldo nasceu em 1928, na cidade de São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Ainda pequeno mudou-se com a família para a capital, especificamente para o movimentado bairro de Campos Elíseos, que na época abrigava a sede do Governo do Estado. E foi próximo ao Palácio, na Avenida Rio Branco, que a mãe de Geraldo estabeleceu a família e abriu uma pensão.
O primeiro contato do ainda jovem Geraldão com o samba aconteceu por volta de 1937, no bairro da Barra Funda (região que, ao lado do Bexiga e Baixada do Glicério, formava o principal reduto negro paulistano naquele período), uma das paradas em que entregava as marmitas que a mãe produzia.
Coincidência ou não, o ofício de marmiteiro, primeiro emprego de Geraldão, também marcou a estréia de outro ícone do samba paulista no mercado de trabalho, o compositor, humorista e intérprete Adoniran Barbosa, que na adolescência, durante os anos 20, foi marmiteiro na cidade de Jundiaí.
Entre uma entrega e outra, Geraldo aproveitava para bisbilhotar as rodas de samba e de tiririca que os carregadores de banana e os engraxates “da antiga” improvisavam no Largo da Banana (na Barra Funda). Neste mesmo período, um dos marmiteiros que o acompanhava era um jovem negro de nome Zeca, que mais tarde ganhou o apelido de Zeca da Casa Verde e tornou-se figura importante dentro do quadro de compositores das escolas de samba de São Paulo.
Filho de um violinista, a musicalidade, despertada nas rodas do centro, sempre esteve presente na vida de Geraldo, que aprendeu a dançar e a dar as primeiras pernadas com a mãe. Mas foi com a avó, que conheceu os cantos entoados pelos escravos nas lavouras e a malícia dos ritmos negros que eram cantarolados nos galpões do interior do estado. Foi a partir desta referência musical familiar, aliada ao protagonismo das rodas de tiririca no centro de São Paulo, que Geraldo, mais tarde um estudioso da cultura afro-brasileira, iniciou sua marcante trajetória no Samba paulista, vindo a compor músicas que ganharam vida nas vozes de Beth Carvalho, Oswaldinho da Cuíca, Clementina de Jesus, entre outros.
Este ensaio monográfico, porém, mais do que apresentar a biografia de Geraldo Filme, que faleceu em janeiro de 1995, aos 67 anos, tem o objetivo de analisar uma de suas mais conhecidas obras, o samba “Tradição (Vai no Bexiga Pra Ver)” que transformou-se no hino da escola de samba paulistana Vai-Vai. Na composição, Geraldo, que abdicou os estudos (mesmo com sua mãe tendo condições de bancá-lo), compensa esta lacuna didática com a riqueza cultural absorvida nos cantos ensinados por sua avó e pela presença constante nas rodas de samba e tiririca que aconteciam clandestinamente no Larga da Banana, na Praça da Sé e na Praça Patriarca.
“Tradição” explora as principais características do Realismo, gênero cultural que desembarcou oficialmente no Brasil na segunda metade do século XVIII, quando a partir da extinção do tráfico negreiro, em 1850, acelerou-se a decadência da nossa economia açucareira, e o país experimentou sua primeira crise depois da Independência.
O contexto social que daí se origina, aliado a leitura de grandes mestres realistas europeus como Stendhal, Balzac, Dickens e Victor Hugo, desencadeia o surgimento do Realismo no Brasil, definitivamente consolidado com as publicações de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (primeiro romance realista do Brasil), de Machado de Assis e “O Mulato”, de Aluísio Azevedo, ambos lançados em 1881.
Geraldo Filme, mesmo sem saber deste histórico, descreve, a partir do contato físico cotidiano com as transformações da sociedade negra paulistana da época, a realidade do negro recém-liberto, utilizando uma linguagem simples, clara e equilibrada para narrar os anseios, a trajetória e o modo de vida do seu povo. Como acontece em “Tradição”, que apresenta sob o ponto de vista de um sambista as transformações que acompanham a modernidade.
As primeiras composições de Geraldo Filme espelham a conturbada transição entre a marginalização e o estrelato da produção cultural afro-brasileira que vivia a sociedade brasileira do período. De um lado os modernistas e intelectuais brasileiros ainda buscavam uma identificação genuinamente nacional, ao mesmo tempo em que crescia no país o interesse pelas coisas negras em geral, gosto este importado da França, onde em Paris, no fim da década de 1910 e início da seguinte, houve um crescente movimento em busca do exótico e do primitivo.
Essa valorização, porém, ao ser importada, sofria com os resquícios de uma perseguição sistemática a gêneros musicais e outras manifestações culturais atreladas aos descendentes de africanos, já que o país ainda vivia a sombra de criar uma nação sob moldes europeus com o objetivo de atingir o progresso e a civilização.
Diante deste contexto, a obra de Geraldo Filme é fundamental para a compreensão de como se deu a consolidação do samba urbano na cidade de São Paulo, incorporando as suas composições letras e características rítmicas do samba praticado pelos negros africanos que trabalhavam nas grandes fazendas do interior do estado.
Foi assim com “A Morte de Chico Preto”, “Batuque de Pirapora”, “História da Capoeira” e também com a música “Tradição”, onde na primeira estrofe, Geraldo relata a perseguição sofrida pelo samba e seus protagonistas na primeira metade do século XX. Já que mesmo na capital e mais de quatro décadas depois da abolição dos escravos, os negros que faziam suas rodas de samba ou que davam suas pernadas nas rodas de tiririca, eram perseguidos pela polícia. No linguajar popular, “o couro comia”. Sambistas da época costumavam levar uns trocados no bolso para não passarem a noite a cadeia. Assim, batucado por poucas horas e clandestinamente, o samba dificilmente amanhecia.
Na seqüência da letra, Geraldo canta a transição física do ritmo. Urbanizado após deixar as lavouras de café e de cana-de-açúcar do interior do estado, o samba passa por uma transformação ao chegar na cidade de São Paulo. Essa característica, que o distancia das suas verdadeiras tradições é cantada com certa nostalgia por Geraldo. Nesta estrofe, é o Romantismo Clássico, extraído da Era Romântica (convencionalmente encontrada entre os anos de 1815 e o início do século XX), no qual certas realidades só podem ser captadas através da emoção, do sentimento e da intuição, quem dá as cartas.
Mesmo tratando-se de uma característica que vai de encontro ao Realismo mundialmente convencionado, Geraldo une com precisão as duas escolas.
Encerrando a canção, o Expressionismo retrata o início da evolução de São Paulo. O Bexiga é o bairro escolhido por Geraldo para explicar esse fenômeno de crescimento populacional e estrutural. Do bairro, poeticamente diz Geraldo, em razão dos sobrados e pequenos prédios que começam a ser erguidos, já não se vê mais a luz do luar. Na seqüência vem à valorização dos redutos que, mesmo com a iminente popularização do ritmo entre boêmios não negros, ainda concentra as raízes históricas do samba trazido do interior, a Escola de Samba Vai-Vai é então exaltada como um local onde o samba continua sendo Samba.
Geraldo Filme, o cúmulo do samba, mais do que narrar o nascimento do samba urbano paulista, poetizou a transição de uma era dentro da música negra brasileira. Resgatou a origem do esquecido samba produzido nas lavouras do interior do estado, valorizou a luta dos seus pares e deu fôlego para que a história do samba paulista prosseguisse, também, pelas mãos de outros protagonistas.
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