Ensaio sobre a obra o Homem que Corre, e do modus operandi da dupla Os Gêmeos e do graffiti entre o final do século XX e o início do XXI.
FOTO BOB WOLFESON/ 2008
O GRAFFTI E OS GÊMEOS
Andar pelas ruas, sem destino e sem norte, em busca da sorte de encontrar um suporte singular. Roupas, pele e cabelos sujos de tinta. Arte equilibrista. Ora marginal, ora conceitual. Quase sempre mal vista.
Queimados do sol, molhados da chuva, mesmo nas mais diversas temperaturas fazem da rua o seu habitat natural. Mendigos, empresários, homens e madames, não importa quem é, quem foi ou quem será, seus traços, democráticos e onipresentes nas grandes capitais, não empoe barreiras. É de todos. Pleiteiam, quando muito, a atenção de um olhar.
A densa arquitetura de concreto e aço erguida aos montes nas grandes metrópoles, delimitando quem vem e quem vai pelos espaços, é cuidadosamente analisada. Entre muros, texturas e portas de ferro, nada é alto, baixo ou inalcançável. Tudo pode ser utilizado.
A coragem, o equilíbrio, o dia e a noite, são igualmente testemunhas dos seus traços nem sempre consentidos ou autorizados.
No caso dos irmãos gêmeos, e univitelinos, Gustavo e Otávio Pandolfo, nascidos e criados no bairro paulistano do Cambuci, e que formam a dupla de grafiteiros Os Gêmeos, cuja trajetória artística, talento e ousadia tornam-se referência mundial, tudo parte do amarelo. Cor primária, forte, intensa e que, assim como as demais cores da sua categoria (o vermelho e o azul), não pode ser decomposta em outras cores, ou seja, é singular como as obras dos irmãos Pandolfo.
Contudo, a tonalidade utilizada no trabalho da dupla, como se tivesse a intenção evidenciar os detalhes da obra rompe com o tradicional impacto visual causado pelo amarelo vibrante da luz do sol, ou mesmo com o amarelo-ouro da bandeira nacional. Trata-se, na verdade, de um amarelo opaco, tímido e meio sem brilho, porém, expressivo.
Apesar da desenvoltura com que traçam as letras arredondas e de difícil assimilação dos grafittis clássicos, são com os personagens amarelos que a dupla mostra a essência e a complexidade de suas criações. Usam e abusam do Expressionismo, mostrando-se mais interessados na interiorização da criação artística do que em sua exteriorização, projetando na obra de arte uma reflexão individual e subjetiva. O cotidiano quente e sofrido dos confins nordestinos, as mazelas sociais das grandes metrópoles, a sutileza feminina, inocência juvenil e a magia circense são as características mais presentes nas obras da dupla.
Por isso, corriqueiramente, os irmãos Pandolfo retratam em seus trabalhos seres humanos solitários e sofredores, com a visível intenção de captar estados mentais, que podem ser vistos em vários quadros e painéis de personagens deformados. Deforma-se a figura, para ressaltar o sentimento.
Em pleno século XXI, onde cada vez mais somos indivíduos, em plena era da valorização da singularidade humana, o graffiti, como movimento, formado em sua maioria por jovens, nem sempre assalariados, mesmo que inconscientemente, organiza-se, remetendo o grosso da sua produção, no que diz respeito à manifestação coletiva, a uma série de movimentos artísticos.
O Dadaísmo, surgido em 1916, na Suiça, pelas mãos e mentes de inquietos jovens artistas franceses e alemães, é um deles. Já que assim como fizeram Marcel Duchamp, Hans Arp, Man Ray e outros importantes “dados”, as principais produções de graffiti não possuem estética ou função específica, enquanto os artistas aparentam falta de sentido em suas criações, defendendo, e praticando, o absurdo, a incoerência, a desordem e o caos.
Contestam leis, paradigmas e, ideologicamente, ou seja, sem pretensões financeiras, em pleno auge da Indústria Cultural, da cultura de massa e da reprodutibilidade técnica da obra de arte, onde a cultura é (quase) sempre o meio para obtenção de fins lucrativos, quando não obscuros, eles privilegiam o anarquismo, a arte pela arte, chegam e vão ser convidados.
Apesar de ter oficialmente nascido nos braços do movimento Hip Hop - manifestação cultural urbana iniciada no final da década de 60, nos Estados Unidos, como forma de reação aos conflitos sociais e à violência sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade responsável por exportar as técnicas e características dos desenhos e letras inclusive para o Oriente - o graffiti, em razão do seu dinamismo e forte poder de persuasão entre os jovens, tomou corpo, bateu asas e voou. Hoje, com a globalização, é uma arte sem fronteiras, sem cor e sem barreiras, feita e vista por todos, porém, compreendida por poucos.
Ao utilizarem a rua como ateliê, tendo a arquitetura dos arranha-céus e os muros das fábricas abandonadas como os únicos suportes “oferecidos” para a suas manifestações, outrora marginalizadas e extremamente mal vistas, o graffiti, mesmo com algumas mudanças culturais, segue como uma arte paralela, underground e, em sua imensa maioria, fora do circuito comercial das artes. Neste caso, as ruas das cidades, pelo menos por ora, funcionam como um eterno Salão dos Recusados para esse movimento artístico, onde a arte tida como marginal, recusada nos grandes museus e galerias, tem suas próprias leis, limites e, principalmente, seu espaço.
As semelhanças com o “verdadeiro” Salão dos Recusados, ou Salon des Refusés, exposição paralela ao Salon de Paris, em 1863, onde foram expostas as obras de arte recusadas no salão oficial, que era destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, pode ser mensurada também na valorização que o novo suporte ganhou com a chegada, ou ascensão, de tal manifestação.
Já que assim como os trabalhos expostos no Salon des Refusés passaram a ser um forte concorrente ao salão da academia e, a partir daquele ano, muitos artistas passaram a organizar exposições autônomas, o mesmo aconteceu com as ruas que, com a disseminação do Graffiti, também passou abrigar fotógrafos, pintores, atores e outros artistas que, organizados, articulam-se de forma independente.
Por ser livre e sem as barreiras físicas e sociais dos museus e galerias, o graffiti, especialmente o produzido pelo GEMEOS, claramente influenciados pelos expressionistas, possui um forte apelo social. Por dialogar com todas as classes e faixas etárias, que se dão ao trabalho de observá-los, eles conscientemente produzem trabalhos de cunho social. Obras que cruzam elementos e características similares ao do Teatro do Oprimido, criado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Bocal. Ao estimular a discussão de um tema no qual existe um conflito claro e objetivo e o desejo e a necessidade de mudança, assim como na obra do jovem encapuzado que corre com um televisor nas mãos, os GEMEOS colocam o espectador como protagonista da obra de arte, despertando neste, na entrelinhas apresentado como principal ferramenta de transformação da situação representada, o espírito do oprimido e, deste modo responsável direto por apresentar alternativas, ou pelo menos questionamentos, que mudem o rumo dos acontecimentos.
Assim como as demais referências históricas até aqui apresentadas, seria impossível não traçar um paralelo entre a atividade dos irmãos Pandolfo e o artista Jean-Michel Basquiat, que no final dos anos 70, despertou a atenção da imprensa novaiorquina, sobretudo pelas mensagens poéticas que deixava nas paredes dos prédios abandonados de Manhattan. Posteriormente Basquiat, que ganhou prestígio e bagagem nas ruas, recebeu o rótulo de neo-espressionista e foi reconhecido como um dos mais significativos artistas do final do XX.
Hoje, com obras expostas nas principais galerias e museus do mundo, OSGÊMEOS, como Basquiat, também foram rotulados, e hoje são conhecidos como um dos principais nomes da Street Art.
Mas será que a polivalência artística da dupla pode ser definida em um único nome?
Talvez, mas é o espírito anárquico e engenhoso que ainda persegue o pensamento dos irmãos Pandolfo, eternos expositores do Salão dos Recusados do mundo moderno, as ruas, que os satisfazem. Pra sorte dos paulistanos, a próxima satisfação deles pode estar bem ao nosso lado.
Andar pelas ruas, sem destino e sem norte, em busca da sorte de encontrar um suporte singular. Roupas, pele e cabelos sujos de tinta. Arte equilibrista. Ora marginal, ora conceitual. Quase sempre mal vista.
Queimados do sol, molhados da chuva, mesmo nas mais diversas temperaturas fazem da rua o seu habitat natural. Mendigos, empresários, homens e madames, não importa quem é, quem foi ou quem será, seus traços, democráticos e onipresentes nas grandes capitais, não empoe barreiras. É de todos. Pleiteiam, quando muito, a atenção de um olhar.
A densa arquitetura de concreto e aço erguida aos montes nas grandes metrópoles, delimitando quem vem e quem vai pelos espaços, é cuidadosamente analisada. Entre muros, texturas e portas de ferro, nada é alto, baixo ou inalcançável. Tudo pode ser utilizado.
A coragem, o equilíbrio, o dia e a noite, são igualmente testemunhas dos seus traços nem sempre consentidos ou autorizados.
No caso dos irmãos gêmeos, e univitelinos, Gustavo e Otávio Pandolfo, nascidos e criados no bairro paulistano do Cambuci, e que formam a dupla de grafiteiros Os Gêmeos, cuja trajetória artística, talento e ousadia tornam-se referência mundial, tudo parte do amarelo. Cor primária, forte, intensa e que, assim como as demais cores da sua categoria (o vermelho e o azul), não pode ser decomposta em outras cores, ou seja, é singular como as obras dos irmãos Pandolfo.
Contudo, a tonalidade utilizada no trabalho da dupla, como se tivesse a intenção evidenciar os detalhes da obra rompe com o tradicional impacto visual causado pelo amarelo vibrante da luz do sol, ou mesmo com o amarelo-ouro da bandeira nacional. Trata-se, na verdade, de um amarelo opaco, tímido e meio sem brilho, porém, expressivo.
Apesar da desenvoltura com que traçam as letras arredondas e de difícil assimilação dos grafittis clássicos, são com os personagens amarelos que a dupla mostra a essência e a complexidade de suas criações. Usam e abusam do Expressionismo, mostrando-se mais interessados na interiorização da criação artística do que em sua exteriorização, projetando na obra de arte uma reflexão individual e subjetiva. O cotidiano quente e sofrido dos confins nordestinos, as mazelas sociais das grandes metrópoles, a sutileza feminina, inocência juvenil e a magia circense são as características mais presentes nas obras da dupla.
Por isso, corriqueiramente, os irmãos Pandolfo retratam em seus trabalhos seres humanos solitários e sofredores, com a visível intenção de captar estados mentais, que podem ser vistos em vários quadros e painéis de personagens deformados. Deforma-se a figura, para ressaltar o sentimento.
Em pleno século XXI, onde cada vez mais somos indivíduos, em plena era da valorização da singularidade humana, o graffiti, como movimento, formado em sua maioria por jovens, nem sempre assalariados, mesmo que inconscientemente, organiza-se, remetendo o grosso da sua produção, no que diz respeito à manifestação coletiva, a uma série de movimentos artísticos.
O Dadaísmo, surgido em 1916, na Suiça, pelas mãos e mentes de inquietos jovens artistas franceses e alemães, é um deles. Já que assim como fizeram Marcel Duchamp, Hans Arp, Man Ray e outros importantes “dados”, as principais produções de graffiti não possuem estética ou função específica, enquanto os artistas aparentam falta de sentido em suas criações, defendendo, e praticando, o absurdo, a incoerência, a desordem e o caos.
Contestam leis, paradigmas e, ideologicamente, ou seja, sem pretensões financeiras, em pleno auge da Indústria Cultural, da cultura de massa e da reprodutibilidade técnica da obra de arte, onde a cultura é (quase) sempre o meio para obtenção de fins lucrativos, quando não obscuros, eles privilegiam o anarquismo, a arte pela arte, chegam e vão ser convidados.
Apesar de ter oficialmente nascido nos braços do movimento Hip Hop - manifestação cultural urbana iniciada no final da década de 60, nos Estados Unidos, como forma de reação aos conflitos sociais e à violência sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade responsável por exportar as técnicas e características dos desenhos e letras inclusive para o Oriente - o graffiti, em razão do seu dinamismo e forte poder de persuasão entre os jovens, tomou corpo, bateu asas e voou. Hoje, com a globalização, é uma arte sem fronteiras, sem cor e sem barreiras, feita e vista por todos, porém, compreendida por poucos.
Ao utilizarem a rua como ateliê, tendo a arquitetura dos arranha-céus e os muros das fábricas abandonadas como os únicos suportes “oferecidos” para a suas manifestações, outrora marginalizadas e extremamente mal vistas, o graffiti, mesmo com algumas mudanças culturais, segue como uma arte paralela, underground e, em sua imensa maioria, fora do circuito comercial das artes. Neste caso, as ruas das cidades, pelo menos por ora, funcionam como um eterno Salão dos Recusados para esse movimento artístico, onde a arte tida como marginal, recusada nos grandes museus e galerias, tem suas próprias leis, limites e, principalmente, seu espaço.
As semelhanças com o “verdadeiro” Salão dos Recusados, ou Salon des Refusés, exposição paralela ao Salon de Paris, em 1863, onde foram expostas as obras de arte recusadas no salão oficial, que era destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, pode ser mensurada também na valorização que o novo suporte ganhou com a chegada, ou ascensão, de tal manifestação.
Já que assim como os trabalhos expostos no Salon des Refusés passaram a ser um forte concorrente ao salão da academia e, a partir daquele ano, muitos artistas passaram a organizar exposições autônomas, o mesmo aconteceu com as ruas que, com a disseminação do Graffiti, também passou abrigar fotógrafos, pintores, atores e outros artistas que, organizados, articulam-se de forma independente.
Por ser livre e sem as barreiras físicas e sociais dos museus e galerias, o graffiti, especialmente o produzido pelo GEMEOS, claramente influenciados pelos expressionistas, possui um forte apelo social. Por dialogar com todas as classes e faixas etárias, que se dão ao trabalho de observá-los, eles conscientemente produzem trabalhos de cunho social. Obras que cruzam elementos e características similares ao do Teatro do Oprimido, criado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Bocal. Ao estimular a discussão de um tema no qual existe um conflito claro e objetivo e o desejo e a necessidade de mudança, assim como na obra do jovem encapuzado que corre com um televisor nas mãos, os GEMEOS colocam o espectador como protagonista da obra de arte, despertando neste, na entrelinhas apresentado como principal ferramenta de transformação da situação representada, o espírito do oprimido e, deste modo responsável direto por apresentar alternativas, ou pelo menos questionamentos, que mudem o rumo dos acontecimentos.
Assim como as demais referências históricas até aqui apresentadas, seria impossível não traçar um paralelo entre a atividade dos irmãos Pandolfo e o artista Jean-Michel Basquiat, que no final dos anos 70, despertou a atenção da imprensa novaiorquina, sobretudo pelas mensagens poéticas que deixava nas paredes dos prédios abandonados de Manhattan. Posteriormente Basquiat, que ganhou prestígio e bagagem nas ruas, recebeu o rótulo de neo-espressionista e foi reconhecido como um dos mais significativos artistas do final do XX.
Hoje, com obras expostas nas principais galerias e museus do mundo, OSGÊMEOS, como Basquiat, também foram rotulados, e hoje são conhecidos como um dos principais nomes da Street Art.
Mas será que a polivalência artística da dupla pode ser definida em um único nome?
Talvez, mas é o espírito anárquico e engenhoso que ainda persegue o pensamento dos irmãos Pandolfo, eternos expositores do Salão dos Recusados do mundo moderno, as ruas, que os satisfazem. Pra sorte dos paulistanos, a próxima satisfação deles pode estar bem ao nosso lado.