sexta-feira, 12 de junho de 2009

Códigos de ética e as leis das ruas


No início da segunda metade dos anos 90, quando tinha por volta de 14 anos mais ou menos, o cair da noite e a chegada da madrugada soavam, para mim, como um despertador para uma nova realidade.

Naquela época, o entardecer era minha porta de entrada para o mundo marginal, perigoso e que em nada lembrava a comodidade do meu lar.

A escuridão do céu, o brilho das estrelas e o eco das ruas vazias foram durante anos as únicas testemunhas das minhas andanças noturnas.

Era neste cenário, geralmente acompanhado por mais um ou dois amigos, que liberava minha testosterona juvenil e minha rasa criatividade e onde meu espírito aventureiro aflorava. Latas de spray na cintura, por vezes um galão de neutrol na mochila, o dedo suja de tinta, várias idéias na cabeça e os pés na estrada.

Posso afirmar que a pixação, manifestação que conheci através de um vizinho, dois ou três anos mais velho do que eu e que no início dos anos 90 escrevia nos muros do bairro o nome da torcida organizada do time da cidade, foi quem me apresentou a realidade das ruas, seus perigos e encantos.

Lembro-me perfeitamente que foi através da pixação que comecei a fazer minhas primeiras “leituras” do mundo e das pessoas.

Sem dúvida foi um período essencial para minha formação, em todos os sentidos. Protagonizar uma manifestação ideológica como essa foi uma experiência sem precedentes, por mais problemas que tenha me causado.

Os pouco mais de três anos de convivência explícita com a rua me fizeram respeitar essa contestadora manifestação (considerada por muitos como uma rebeldia sem causa de um bando de tolo energúmenos que não tem mais nada para fazer), a ponto de enquadra-la, conceitualmente, como arte. Seu processo criativo, operacional e de produção, a meu ver, legitimam esta qualificação.

Apesar de aparentemente passar por cima de tudo e de todos, sem olhar para cima, para baixo ou para os lados, a pixação, assim como qualquer outra manifestação coletiva, possui alguns códigos de ética, mesmo que não estabelecidos formalmente.

O ato de atropelar, ou seja, escrever por cima de uma outra pixação, por exemplo, talvez seja o mais significativo item deste código de conduta. Um deslize como esse, intencional ou acidentalmente, não raramente acaba mal. Dentes quebrados, luxações, ossos fraturados e até mesmo a morte podem ser as conseqüências desta quebra de decoro. A Lei das ruas não perdoa tal infração.

Quando pixava, além deste componente, e ainda hoje como grafiteiro desautorizado que sou, costumo seguir algumas outras condutas como não fazer intervenções em:

- muros novos ou intactos (sempre privilegiei texturas e ambientes degradados pelo tempo. Artisticamente promovem um diálogo mais interessante com o que é proposto);
- determinados equipamentos públicos;

- por cima de pixações, grafittis, esculturas e monumentos alheios.

Hoje, após anos e anos de indiferença, a ainda marginalizada cultura urbana extremamente presente no cotidiano das grandes capitais parece ter entrado na agenda de discussões do poder público e da própria sociedade civil. Para infelicidade dos verdadeiros pixadores, que querem apenas serem reconhecidos por seus pares, mais ninguém.

Tudo bem que seria quase que inevitável a pixação entrar na ordem do dia, tendo em vista tamanha atuação deste movimento nos grandes centros, em especial em São Paulo.

Porém, quando veio a tona, a democrática manifestação, da forma como tomou corpo e se popularizou na cidade, foi descaracterizada. Impulsionada por eventos polêmicos, liderados por pessoas que não representam o verdadeiro sentimento da maioria, como as invasões da Bienal, da Galeria Choque Cultural e ao ataque ao painel de grafittis do vão da Avenida Paulista, a pixação ocupou lugar de destaque nos noticiários.

Algo semelhante a esses ataques voltou a acontecer no último final de semana, em proporções menores, é verdade, mas com os mesmos graves sinais de quebra de decoro que permeiam o inconsciente dos pixadores.

Acontece que a bela Fonte Monumental, localizada na Praça Julio Mesquita, no Centro de São Paulo, amanheceu pixada na segunda-feira (08/06). O ato deste pixador, que rompeu com o código de ética dos artistas de rua ao rabiscar uma obra alheia, deixou centenas de pessoas descontes, gerou discussões e chegou as páginas dos principais jornais da cidade.

Contudo, na pixação, o ibope, a fama ou o reconhecimento (como preferirem), não é legítimo ser for pré-orquestrado, ou “patrocinado” por uma emissora de TV ou por um jornal de grande circulação. O verdadeiro pixador não utiliza o movimento como meio para obtenção de “ibope”, a pixação é o fim, sua concretização é que deve ser alcançada. Os méritos são conquistados noite após noite.

Mas se era a efemeridade da obra o que eles buscavam, certamente conseguiram. Certamente não representam à maioria.

Arte, mesmo que pela própria arte, deve ser a cima de tudo, respeitada. Os pares, ao menos, devem ser preservados.



Lei a baixo um pequeno histórico sobre a Fonte Monumental

A escultora Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto foi contratada pela Prefeitura de São Paulo, em 1913, para construir uma fonte de mármore branco de Carrara e bronze, destinada a embelezar a esplanada em frente à Catedral da Sé, mas imprevistos atrasaram sua implantação em mais de dez anos. Optou-se, então, por destiná-la à Praça Vitória, junto à avenida São João e as ruas Aurora e Vitória, no bairro de Santa Ifigênia. A medida visava embelezar a avenida mais larga da cidade na época. Em 1927, a fonte foi montada e inaugurada. No mesmo ano, a praça passou a se chamar Júlio Mesquita.