segunda-feira, 4 de julho de 2011

ESPELHOS E RETRATOS

Por Sidney Santiago
(Ator e Menbro fundador da Cia. Os Crespos)

Fotos MANDELACREW



ORFANDADE


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Nascida da união do bugre Antônio Maria de Jesus, um mascate que ajudou a construir Brasília, e da cozinheira Maria da Luz de Jesus, bela negra retinta de cabelo puma, Maria da Paixão de Jesus, dama da resistência da arte no sudeste, nasceu em 3 de março de 1953, na cidade de Bocaiúva, nas Minas Gerais.

Num sistema escravocrata, a menina Paixão cresceu com muitas responsabilidades: cuidar dos irmãos mais novos, ser dama de companhia, bordadeira, cozinheira e ainda gritar leilão para igreja aos sábados. Na época em que já se tornava uma mocinha, recebeu a educação francesa do “servir sem fazer barulho”, o que a possibilitou ser professora de catecismo na fazenda onde residia e ter proximidade com a casa grande. Foi assim que teve acesso a jornais mensais que vinham de São Paulo, tornando-se fanática por leitura.

Os anos vão passando, a menina que canta na capela na Igreja Matriz de Bocaiúva é convidada a solar na banda da cidade, alegrando os bailes carnavalescos da época nos salões para a burguesia local.

Como uma roupa que já não lhe serve, um sapato que aperta o calo, Bocaiúva, já no início dos anos 60, estava pequena demais para satisfazer os sonhos e desejos da menina que já era quase mulher. Em 1969, durante uma de suas aulas de catecismo, lê na manchete do jornal Diário da Noite, na coluna de Wilton Viana, na página do meio: “Precisa-se de cantores e bailarinos, homens e mulheres, para fazer tribo na peça Hair, em São Paulo”. Ela, decididamente, fez sua trouxa, comunicou a família, juntou alguns cruzeiros e, antes da partida, ouviu de seu pai: “Viva seu sonho, porque Brasília pra mim foi muito bom”. Diante da despedida feliniana ela rompeu o cordão e tomou o último ônibus em direção a cidade de São Paulo.


“se for ator para não modificar nada... vai á merda.”

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Dez horas de viagem, alguns poucos cruzados e lá estava ela diante da banca de jornais do antigo Teatro Aquarius, no Bexiga . A artista Maria da Paixão de Jesus nasceu para o mundo neste exato momento. Ela cantou e na entrevista foi sincera, dizendo que veio de Minas Gerais, era virgem e gostaria de permanecer, não tinha lugar para ficar na cidade e amava cantar.

Aprovada no teste, através da articulação de Ademar Guerra (1933 – 1993) e Altair Lima (1936 – 2002), no mesmo dia ficou sabendo que ficaria hospedada na casa do russo Eugênio Kusnet (1898 – 1975), ator, diretor e professor de teatro radicado no Brasil, em troca cozinharia e faria companhia a sua família. Neste mesmo ano, entre exaustivos ensaios, leu toda a história do teatro ocidental através da biblioteca da família Kusnet e estreou Hair, em outubro de 1969.

Consolidando-se entre todos os desafios da artista negra no país, ela esteve em todos os sucessos teatrais dessa década: Gospel, Morte Vida Severina e, posteriormente, na Ópera do Malandro, onde deu vida ao personagem Jussara Pé de Anjo.

Em mais de trinta anos de carreira a palavra superação e mobilidade estão ligadas à sua trajetória. Paixão atuou em mais de dez novelas, foi uma das primeiras atrizes negras na posição de garota propaganda, crooner da Boate do Sargentelli, White face na montagem teatral A Moreninha, fundadora da Banda Barraco 37 (que existiu entre os anos de 1983 a 1990), Secretária de Cultura do Município de Osasco (nomeada por Ana de Holanda).



“Eu nunca dei pra ninguém do movimento negro, todas as mulheres que deram se enfraqueceram...”

Nos anos 80, foi porta voz da luta por visibilidade da população negra, idealizadora do Projeto Zumbi na Praça da Sé e, nos anos 90, por dificuldades financeiras, tornou-se modelo vivo. Em 2003 integra o elenco do seriado Turma do Gueto.

Mas devido à instabilidade e ao pouco espaço que ainda existe para as atrizes negras na cena contemporânea tem a idéia de fazer lanches naturais e vender de porta em porta na cidade de Osasco, onde reside.

A trajetória de Maria da Paixão de Jesus é inscrita e inscreve a saga de mais uma brasileira agoniada que fez e faz a diferença em nossos dias.