segunda-feira, 18 de julho de 2011

BOTAS QUE CANTAM

Por Cristiane Gomes
Fotos Bruno Thomaz e Rodrigo Melleiro






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África do Sul. Fim do século XIX. A descoberta de minas de ouro e de diamantes pelos colonizadores britânicos faz explodir a luta pelo controle da riqueza mineral do país. Homens são brutalmente arrancados das mais variadas comunidades para servirem de mão de obra barata (para não dizer escrava) nas minas de ouro sul-africanas.

Amontoados em ambientes insalubres, marcados pela umidade e escuridão, eram acorrentados aos seus postos de trabalho e proibidos de falar uns com os outros. Não raramente permaneciam com água pelos joelhos e por causa disso apanhavam todo o tipo de enfermidades. O resultado, obviamente, era uma baixa produtividade.

Para minimizar os impactos negativos na extração do ouro, os colonos resolveram providenciar botas de borracha aos trabalhadores das minas.

Foi então que diante da intrínseca relação do africano com o corpo e a música, os mineiros perceberam que gritos, cantos, palmas e o batuque em suas botas poderiam ser usados como ferramenta para se estabelecer um diálogo sem que houvesse a necessidade do idioma. E aqueles homens que lutavam por uma vida melhor para suas famílias se dedicando à situações difíceis de trabalho, sem saber, estavam criando uma rica, complexa e vigorosa dança tradicional: o Gumboot.

Gumboot quer dizer botas de borracha, item tão importante nessa dança que está em seu próprio nome. Ao identificarem essa possibilidade, os mineiros sul-africanos começaram a aperfeiçoar os movimentos e sons em seus momentos de descanso, fora da mina, ou seja, nos alojamentos. Era para lá que levavam as botas e as correntes para que pudessem aprimorar sua comunicação. “O Gumboot nasceu de uma luta pela sobrevivência e depois, nos alojamentos, se transformou em uma dança propriamente dita, uma forma de diversão para aqueles trabalhadores”, conta Rubens Oliveira, diretor do grupo Gumboot Dance Brasil e precursor da dança em terras brazucas.

Hoje, o trabalho nas minas na África do Sul já não existe mais. Consequentemente, o Gumboot como mero instrumento de comunicação também não. Porém, a dança segue viva e forte sendo até ensinada para crianças em algumas escolas do país. Do século XIX das minas até o século XXI da modernidade, muitas coisas se transformaram. Atualmente as mulheres podem dançar o Gumboot, o que em sua origem era proibido, já que apenas os homens eram designados para o trabalho nas minas. Mas se alguns princípios do Gumboot foram se transformando em dois séculos de existência, a essência da sua origem ainda pode ser vista no corpo dos dançarinos contemporâneos. A coluna curvada, as pernas dobradas e altas, rentes ao peito, a mão aberta batendo na bota para causar um volume alto. Todos esses movimentos não são impunes. Foram criados e adaptados diante da realidade daqueles trabalhadores.



BRASIL
Em 2005, Rubens Oliveira então integrante da Companhia de Dança Ivaldo Bertazzo (onde começou sua carreira de dançarino) conheceu um grupo de bailarinos sul-africanos, os Kholwa Brothers, que estavam desenvolvendo um trabalho de formação com a Companhia dentro do processo de criação do espetáculo Milágrimas. Por três meses, o especialista em cultura sul-africana Derik Mlamboo, ministrou aulas básicas de Gumboot para a Companhia. Foi amor à primeira vista e Rubens mergulhou fundo nessa paixão. “Eles voltaram outras vezes aqui no Brasil e em todas elas, lá estava eu no hotel quase que 24 horas aprendendo com eles e, claro, ensinando coisas daqui”. Desde então, Rubens não parou mais de pesquisar sobre a dança das botas de borracha, até que em 2009 criou o Gumboot Dance Brasil. “O Gumboot me remete à uma força visceral. Ele entrou no momento certo em minha vida. A sensação que eu tenho é de que eu faço isso desde sempre. Acho que em meus ancestrais deve ter tido algum Gumboozeiro”, reflete Rubens. O grupo conta com 12 bailarinos, homens e mulheres, nem todos profissionais da dança (nele há uma psicóloga, um professor de educação física, jornalista, músico), mas unânimes na admiração do vigor, da força e da vibração que o Gumboot representa. “O mais gostoso é ver diferentes corpos desenvolvendo esse trabalho. Cada uma dessas pessoas traz uma referência corporal distinta”, acredita Rubens. “No início pensei que não daria conta. O Gumboot é uma dança que exige uma resistência física muito grande, além da concentração e coordenação”, conta a dançarina Janette Santiago, integrante do grupo e que, sim, deu conta de representar o vigor dessa dança

Os dois anos de pesquisa do Gumboot Dance Brasil resultaram na criação do espetáculo Yebo (que significa “sim, vamos” uma das palavras mais usadas pelos líderes das minas), que estreou no começo do mês de junho, na Sala Crisantempo, em São Paulo, com sessões disputadíssimas.

Foram duas únicas apresentações e muita gente ficou de fora. Além dos bailarinos, o espetáculo contou com a participação da banda paulistana Afro Electro, que desenvolve uma pesquisa de musicalidade africana. Foi a primeira vez que um espetáculo somente de Gumboot foi apresentado no Brasil. E que espetáculo! Yebo quis (e conseguiu) recriar a atmosfera rítmica e poética do ambiente sombrio das minas sul-africanas do século XIX.

A as apresentações, é verdade, já passaram, mas as lentes dos fotógrafos Bruno Thomaz e Rodrigo Melleiro, para nossa sorte, captaram as sombras, os gestos, a luz e a energia do sinuoso balé percussivo do Gumboot. Um ensaio pesado. Uma verdadeira pisada com bota de borracha.



CLICK
gumbootdancebrasil.blogspot.com
myspace.com/afroelectro

Bruno Thomaz
brunofotos.com

Rodrigo Melleiro
flickr.com/photos/nadsat