domingo, 6 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA AFRO-BRASILEIRA

Por Renata Felinto
Fotos Arquivo Pessoal
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A arte contemporânea brasileira recebe influências diversas e envereda por vários caminhos, sendo um dos observados a tendência a um grande recorte ou mesmo releitura de tudo o que já foi produzido em artes plásticas até hoje.
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A pesquisadora Kátia Canton, explicita e contextualiza esta disposição às apropriações, citações e releituras apontadas por meio de uma pesquisa na qual mapeou 70 artistas brasileiros e identificou temáticas recorrentes como, por exemplo, a memória física e psíquica; identidade e anonimato; estranhamento e auto imagem. Algumas das temáticas citadas estão em consonância com a produção de artistas afrodescendentes contemporâneos como Edson Barrus, Eustáquio Neves e Rosana Paulino, que aproximam-se destes assuntos contemplando aspectos estéticos e tecendo reflexões sobre a trajetória e o lugar ocupado pela população negra.
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Barrus, Neves e Paulino coincidem na temática norteada pelo fio antropológico, ancestral, negro, escravo e na opção por técnicas derivadas da linguagem fotográfica, porém, sobretudo, estabelecem relações entre suas heranças africanas e seu presente afrodescendente apresentando obras que não se limitam à menção da religiosidade afrobrasileira, ampliando, assim, a compreensão do que vem a ser a arte afrodescendente.
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Edson Barrus é pernambucano, formado em Zootecnia e Mestre em História da Arte. Sob o título Base Central Cão Mulato, sua obra metaforiza e compara a qualidade de mulato à de um cão vira-lata, ambos resultados de cruzamentos.
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Em sua instalação, Barrus simula o cruzamento dos DNAs de raças de cães previamente selecionadas, que se completa na Base Central Cão Mulato formada por vários equipamentos. O racismo praticado contra o mulato, que de forma contundente e agressiva é comparado a um vira-lata é o mote da obra. O quadro observado revela a inquietação: “o que são os mulatos dentro da sociedade brasileira?”. Inquietação que permeia o trabalho de Barrus, já que o mulato, de fato, não é branco e nem negro, é exatamente os dois, um tipo novo, que se reinventa, na visão categórica do artista, assim como um cão vira-lata.
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O mineiro Eustáquio Neves é autodidata desde 1984, e abandonou a profissão de químico técnico para se dedicar integralmente à fotografia. Seus trabalhos são produtos de imagens fragmentadas que se reconstroem através do processo químico, pela superposição de negativos, dando origem a imagens duplas, até múltiplas, conferindo às mesmas aspecto antigo, espectral, que pode ser relacionada à memória, ao ancestral. Neves desvela, através das imagens da série Arturos, a condição de humanidade que séculos de escravidão tentaram subtrair aos descendentes dos africanos no Brasil. Os Arturos constituem um grupo familiar de negros que vivem em Contagem (MG). A manutenção da cultura negra e afro-religiosa recebida de seus ancestrais e materializada em festas é a sua principal característica. A origem da comunidade é o negro Arthur Camilo Silvério.
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Com está série, Neves fez com que a tradição se revestisse de roupagem atual, despertando naqueles que tomam contato com a obra valores ancestrais estranhos à realidade pós-moderna. Quantos não são os afrodescendentes que não sabem a história de suas famílias? De seus ancestrais? Com Arturos, Eustáquio Neves recupera a narrativa de descendentes de africanos que se recriam e se relembram no seu simples modo de ser, viver e pertencer.
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“As obras destes artistas caminham para além do aspecto formal, pois incomodam,
comunicam e socializam certos saberes, demonstrando que eles estão na contramão da tendênciada arte que cita a si própria e que, não raramente, gera produções ininteligíveis restringindo e afastando o grande público da apreciação da arte contemporânea”.
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Rosana Paulino, paulistana formada em Artes Plásticas retira de suas vivências o seu assunto principal. No universo da sua intimidade, transmite e causa reflexões ao compartilhar o exercício de ser “mulher e negra” em um mundo moldado para o “homem e branco”. Na pequena série Sem título, na qual a artista usa como suporte bastidores de bordado com fotografias de mulheres de sua família transferidas para o tecido, evidencia a condição de mulheres que se sentem impotentes diante de uma sociedade que as menospreza, que ignora suas opiniões, seus anseios e sua estética. Todas essas privações foram exteriorizadas por Paulino através de um ato doméstico: costurar, coser. O inocente ato de costurar ou de bordar é transformado em agressão, coação, deformação. O que de belo resultaria da confecção das linhas coloridas de um bordado, manifesta-se como a impossibilidade de ser, ter e pertencer a todos os valores que estão agregados a este fazer: ter um marido, uma família, constituir um lar.
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Suas mulheres são cerzidas, assim como algumas mulheres que sofrem a excisão, e por isso são privadas do prazer sexual, neste caso, privadas do prazer de viver com dignidade, com a consciência do próprio valor. Esse contra-senso, ou até “castração social”, é perceptível no cotidiano de mulheres negras abandonadas à própria sorte pelo companheiro, pelos serviços sociais, pela sociedade.
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Barrus, Neves e Paulino tocam em feridas mal cicatrizadas que persistem no cotidiano do povo brasileiro e também resistem ao ambiente misterioso da arte contemporânea nacional.
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LEIA
Livro: Novíssima arte brasileira
Autora: Kátia Canton
Editora: Iluminuras
São Paulo, 2001
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CLICK
rosanapaulino.blogspot.com
museuafrobrasil.org.br