quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

ANTROPOLOGIA DA ARTE NEGRA


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No contexto das artes plásticas, a arte negra representa uma tendência ainda emergente à medida que reflete uma arte de causa e afirmação.
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É inevitável que o artista, sendo a antena da sociedade, capte o sentimento dos novos rumos que ela haverá de seguir. Em alguns casos, essa compreensão se configura dentro de um processo dramático, cuja trama sugere um bricolage, tal como um mosaico de muitas entradas, às vezes, poucas saídas, um vaivém demasiado.
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Pensar a milenar história africana perante a breve história secular brasileira, por exemplo, é um exercício antropológico de difícil realização diante da conjugação de realidades culturais tão distintas.
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No âmbito das artes plásticas, somente a iconografia com seus signos poderia indicar uma significação propícia para indagarmos questões da ciência da história, pois na arte tudo é possível, já que uma das formas de entendê-la é observá-la em sua essência de liberdade.
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A arte também pode representar um diálogo substancial, de um tempo que busca existir para que, nesse ato, a existência se revele ontologicamente de modo que o ser seja uma manifestação objetiva do subjetivo.
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O artista, espécie de bruxo, interpreta nos objetos a projeção de uma imagem onírica pura que busca se expressar para o mundo dele – imagem essa que ganha dimensão atemporal num tempo dado por relações determinadas – cuja temporalidade não permite a compreensão de usa infinitude em relações de finitude. Observemos, então, Marilena Chauí quando indaga o que é criação.
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Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro, há o momento instituinte, no qual o ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do filósofo. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque possuem um modelo que lhes garante o acesso ao ser, pois é sua ação que se abre, e abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do ser.
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A colonização européia dispensou um tratamento violento e marginalizante ao pensamento religioso africano. Considerou seus cultos politeístas e grosseiros, enfim, como uma heresia mística. A parte mais dolorosa, entretanto, veio com a diáspora negra. No Brasil, por exemplo, provavelmente parte da literatura mitológica africana trazida por alguns sábios escravizados foi queimada por ser considerada bruxaria. Mais uma vez, portanto, os deuses africanos foram vistos e tratados como fantasmas por uma cultura que, impregnada de eurocentrismo, mostrou sua incapacidade de relacionar-se com a diferença epistemológica.
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A violência do sistema escravista concorreu para desarticular a riqueza cultural dos africanos. Como bem nota o professor Darcy Ribeiro: A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.
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Cabe indagar, para entendermos essa história, se tais fatos não tivessem ocorrido, o que seria a plena contribuição africana para a humanidade.
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O trabalho livre é incipiente em relação ao escravismo em nosso país. Antes de completar 500 anos, o Brasil já era marcado pela violência de 350 anos de trabalhos escravos. Se o capitalismo fere os anseios do trabalhador livre, o comportamento senhorial do período escravista, no Brasil, impregna as relações do trabalho livre, produzindo mecanismos que aviltam a natureza ontológica do homem.
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A inversão de valores ocorrida na construção colonial negava o fazer em favor do pensar. Essa contradição ideológica configura-se como uma patologia visível na estrutura do pensamento colonial, pois pensa a história fora das relações econômicas, tal como um pensar sem sentido histórico dado pelo fazer.
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Esse intrincado de densidades semânticas coloniais serve de alerta para que se faça uma reflexão que permita a compreensão da ausência de dialética histórica nessa forma de dominação, na qual o fazer não foi a base do pensar.
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Nota-se, portanto, fortes contradições, que são verdadeiros tijolos da edificação do privilégio do direito, articulado no pesado fardo da fantasia autoritária do direito do privilégio que impregna as relações trabalho-capital, nas quais a força de produção resgata seu status humano no longínquo universo da arte.
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O ensaio Mãos Negras tem como objetivo contribuir para a elucidação do universo onírico do negro brasileiro, traduzido na sua inquietante utopia artística, em que tenta recriar um mundo segundo os valores das etnias africanas que vieram para cá.
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Na possível ontologia das divindades negras, a existência está norteada pelo binômio indissociável vida e morte. É dessa maneira, portanto, que todas as relações do ser nascem e se estabelecem no mundo visível do artista negro.
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Os artistas negros inspiram-se na força das culturas africanas. Por isso, essa arte de resistências recria os fragmentos da vida material em harmonia com o invisível mundo dos já-idos, como na religiosidade africana tradicional. Em outras palavras, a dinâmica harmonia das danças da orixalidade segue a ordem da maestria invisível do ritmo dos deuses da morte. Enfim, a teologia da morte encontra, na cosmogonia africana, o princípio para a harmonia da vida visível.
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A contradição das relações de produção, que impregna a nova forma de existência, decorrente da revolução tecnológica, infelizmente não superou a velha herança de dominação que nos reduz a uma tristeza irreparável da espécie, que se traduz na exploração do homem pelo próprio homem.
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Daí pensarmos na vocacional dependência do trabalho do outro, que escreve o “eu” da situação estabelecida – colonial - colocando o outro numa esfera sem sentido, pois essa situação lhe furta a essência da vida. Em outras palavras, essa relação significa que o império da dominação eurocêntrica se faz num processo de reificação do outro e só o concebe numa relação de dominação.
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A existência de quem domina só se faz através da subtração essencial daquilo que o produtor de sentido constrói. Assim, o dominado é o construtor de sentido, mas sem ter o direito de estar dentro desse sentido para o seu regozijo.
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Ora, diante de uma tal negação do trabalho, como uma constante da perseguição da alma do negro, só um lugar se constituiria em terreno fértil para se plantar a semente da vida como possibilidade da comunhão de todos – a arte, na qual as pessoas se relacionam no plano da alma e do sentido, ou seja, no plano da intuição, que Nietzsche já percebia ser a mais inteligente das inteligências.
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É sensato supor que, nessa perspectiva, a arte do negro na diáspora represente fragmentos miméticos de tantas outras Áfricas, para que sua alma venha repousar, enquanto o seu corpo ainda está preso a relações de dominação eurocêntricas, o que pressupõe a ausência de respeito à diversidade que marcou os últimos séculos no Brasil.
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Texto extraído do livro:
Mãos Negras – Antropologia da arte negra
Celso Prudente
Editora: Panorama do Saber
2002