sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Samba, suor e resistência!

Por Nabor Jr.
Foto Autor Desconhecido

Especial Samba Paulista (Geraldo Filme)


“Dedivo a sua inteligência, diziam que Geraldo Filme tinha três cabeças ao invés de uma"
Mestre Feijoada, parceiro do compositor
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Cantor, compositor e pesquisador, Geraldo Filme de Souza, nasceu no bairro de Campos Elíseos, em São Paulo, no ano de 1927, e foi sem dúvida um dos mais importantes e representativos nomes da história do samba paulista. O talento para o samba e a vocação idealista estiveram presentes na vida deste sambista desde cedo. Sua mãe fora fundadora do primeiro cordão carnavalesco formado só por mulheres negras de São Paulo, e que futuramente transformaria-se na Escola de Samba Paulistano da Glória.

As composições de Geraldo Filme focavam a tradição rural, com narrativas calcadas no cotidiano de uma São Paulo ainda provinciana. Aos dez anos de idade, o precoce artista compôs sua primeira canção, intitulada “Eu Vou Mostrar”. Foi à forma que o menino encontrou de chamar a atenção do pai, Sebastião, amante do violino e do carnaval carioca. Nesta época, o samba paulistano era camuflado no meio das rodas de tiririca, que eram as rodas de batucadas promovidas pelos engraxates que trabalhavam no centro da cidade e que utilizavam os próprios instrumentos de trabalho, como as latinhas de graxa, as escovas e as garrafas d’água para marcar o ritmo e acompanhar o jogo da tiririca, uma espécie de capoeira dos redutos negros.

Com a música “Eu Vou Mostrar”, Geraldo Filme abriu caminhos para uma série de sambas compostos por ele próprio, e que futuramente seriam levados para avenida através de tradicionais agremiações paulistanas, como foi o caso da Escola de Samba Unidos do Peruche - da qual foi fundador - e da Vai-Vai.

No início de sua carreira, Filme compunha sambas-enredos para o Cordão Carnavalesco Paulistano da Glória. Mais tarde, participou da transformação do bloco em escola de samba, sendo um de seus fundadores. Ex-diretor de carnaval da Escola de Samba Coloração do Brás, foi campeão pela escola Vai-Vai com o samba-enredo “Solano, Vento Forte Africano”, em homenagem ao poeta e folclorista Solano Trindade.




Trecho do Programa Ensaio, da TV Cultura, gravado em 1982.

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A Morte de Chico Preto, Silêncio no Bixiga, Batuque de Pirapora, entre outros sambas gravados por Clementina de Jesus, Beth Carvalho, Oswaldinho da Cuíca e Fabiana Cozza fazem parte do repertório deste brilhante músico. “O samba paulistano com certeza ganhou mais força nas letras deste compositor”, é o que afirma o também compositor Paulo Vanzolini.

O lado compositor de Geraldo Filme, no contexto da afirmação cultural do negro, nos legou também a música Batuque de Pirapora, crônica da perseguição ao samba pela igreja católica em Pirapora do Bom Jesus, berço do samba rural paulista. No trecho da música: "Ouviu-se a voz do festeiro no meio da multidão, menino preto não sai aqui nesta procissão! Mamãe mulher decidida ao santo pediu perdão, jogou minha asa fora, me levou pro barracão", a ironia do racismo e da resistência via sincretismo religioso-profano dando origem ao mais forte legado, o samba alegre e combativo.

No final da década de 60, no Barracão de Assis e Solano Trindade, no Embu das Artes, Geraldão conheceu o dramaturgo Plínio Marcos. Da bem sucedida parceria entre os dois, além de diversas canções, nasceu também o espetáculo Balbina de Yansã e o musical Pagodeiros da Paulicéia.

Na opinião do sambista T. Kaçula, Geraldo Filme foi primordial para que hoje, “os crioulos” possam fazer o seu samba sem serem incomodados por ninguém. “Ele enxergava o samba como cultura, e o negro como peça fundamental desse movimento cultural, e fazia questão de valorizar a nossa raça. Não só ele como muitos outros levaram borrachada e foram presos na época da ditadura militar, e bravamente resistiram. Sem eles eu não sei o que seria. De samba é que não viveríamos”, afirma o historiador.

Segundo o grande amigo do compositor, o sambista Seu Nenê da Vila Matilde, Geraldo Filme era um “cara diferenciado”. “Ele deixou marcas. Porque além de compositor, ele fez um trabalho de formação das escolas de samba em São Paulo. Deixou uma história”, acrescentou.

Embora dez entre dez sambistas e historiadores reconheçam a importância de Geraldão para o desenvolvimento e fortalecimento do samba paulista, a discografia do sambista é extremamente curta – já que apesar de ter deixado aproximadamente 70 composições, gravou apenas dois discos em vida: O Canto dos Escravos – com Clementina de Jesus e Geraldo Filme – solo - lançado pela gravadora Eldorado, em 1980, quando tinha 52 anos de idade.

Porém é grande a quantidade de material inédito e de registros de trabalhos do compositor, contudo, restrito a arquivos pessoais e a instituições de preservação da cultura popular, como a UESP (União das Escolas de Samba de São Paulo).

Em 2000, o Sesc lançou uma coleção a partir das gravações do programa Ensaio, da TV Cultura, intitulado "A música brasileira por seus interpretes". O único e póstumo CD de Geraldo Filme faz parte desta coleção.

Geraldo Filme destaca-se no cenário do samba paulista em razão da sua importância no processo de distinção, legitimação e afirmação do gênero a partir de suas influências rurais. O conteúdo das letras deste extraordinário sambista continha em sua grande maioria críticas sociais e raciais, e sobretudo, valorizavam a cultura negra paulista, buscando reconstruir a “história não contada” da cidade de São Paulo. A trajetória de Filme mescla-se ainda a momentos significativos do carnaval paulistano e as mudanças pelas quais o mesmo passou nos últimos 50 anos.

O sambista irritava-se quando ouvia que São Paulo era o túmulo do gênero, e em seus discursos sempre combateu a elitização do samba. “Enquanto Adoniran Barbosa era mais pitoresco e Paulo Vanzolini mais técnico, Geraldo representava um lado mais genuíno do samba paulista”, diz o historiador T. Kaçula.

Entre os feitos que o colocaram para sempre na história do samba nacional, destaca-se também sua eleição como primeiro presidente da União das Escolas de Samba do Estado. Era adorado por toda a comunidade do samba, mas bastava sair desse meio para tornar-se um ilustre desconhecido. Geraldo Filme morreu em janeiro de 1995, aos 67 anos.

“Diziam que Geraldo Filme tinha três cabeças ao invés de uma, devido a sua grande inteligência”, conta Mestre Feijoada, antigo parceiro do compositor.