quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Traficando Conhecimento

Por André Ebner
Fotos MANDELACREW e Divulgação


Entrevista com a jornalista e escritora mineira Jéssica Balbino, militante do movimento hip hop, representante da nova literatura marginal brasileira e que no próximo mês de outubro lança o seu segundo livro: “Traficando Conhecimento”.

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Jéssica Balbino

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Jéssica, vamos começar por onde você nasceu, como foi sua infância...
Eu nasci em Poços de Caldas, MG. Minha infância foi uma delícia. Eu sinto muita saudade daquele "tempo bom, que não volta nunca mais". Como em toda periferia, cresci na rua, brincando livre e me divertindo. Mas, como eu era gorda (e ainda sou), algumas vezes, era "panelada" de certas brincadeiras, então, desde cedo, me refugiei nos livros e no conhecimento. Então, desde a infância vem minha paixão pela escrita e pela literatura. No mais, eu adorava estudar também. No tempo livre, brincava na rua de tudo aquilo que quase não vemos mais hoje: pipa, carrinho de rolimã, esconde-esconde, banho na enxurrada, etc.

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Como foi seu primeiro contato com o hip hop?
Meu primeiro contato com o hip-hop aconteceu há 10 anos. Foi perto de casa. Eu tava voltando da biblioteca com algumas amigas e entramos num poliesportivo. Tinha uns meninos dançando . Até então, hip-hop pra mim era algo muito distante, coisa da televisão. Ao ver, pessaolmente, aqueles movimentos incríveis e aquela batida sobre a qual eles dançavam, fiquei fascina. Não queria ir embora. Voltei no outro dia. E no outro. Claro que cedo percebi minha limitação na prática do e dos outros elementos, mas, era uma turma muito bacana com quem fiz amizade e eles me apresentaram tudo do hip-hop, inclusive o conhecimento, vindo através das revistas e daí, não parei mais. Este também é um tempo bom, que nunca mais vai voltar, mas que sinto muita falta, e trabalho todos os dias para que mais jovens, como eu, naquele dia, sejam fisgados pela cultura

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Muitos dizem que devemos tirar os jovens da rua, ser fisgado pelo hip hop seria devolver a rua aos jovens?
Seria criar qualidade, na rua, para os jovens. Eu mesma, naquela tarde. Eu poderia ter ido embora. Se o hip-hop não existisse, o tédio e o ócio, mesmo com a biblioteca, iriam me consumir e uma hora, eu faria coisas erradas. Entrar naquele poliesportivo e ter o primeiro contato com o hip-hop foi fundamental para que eu tivesse vontade de permanecer na rua, mas numa rua que me oferecia música, dança, arte e principalmente conhecimento.
Assim, penso que devemos proporcionar esta qualidade aos jovens. Se em casa poliesportivo do Brasil, ou, em cada quadra, esquina, bar, etc existir um elemento do hip-hop presente, é qualidade dentro da periferia. É chance, é porta, é janela, é perspectiva e oportunidade. Eu penso isso.
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Quando você percebeu que podia unir as duas coisas, aqueles livros que você lia na infância com o movimento que aprendeu através do break?
Ah, acho que foi um processo meio natural. E ao mesmo tempo não, porque é difícil ter essa sacada com consciência. Mas, ler na infância me faz ter senso crítico, instinto de indagação (já era repórter e nem sabia ..rsrs) e aí, quando eu conheci o breal, pensei: por que é assim? De onde surgiu? como acontece? E essa vontade de saber mais me moveu para outros livros, nos quais procurei a resposta para as perguntas. Foi aí que senti que por meio da leitura, eu estava conhecendo e ajudando a propagar, mesmo que não dançando, o e os demais elementos do hip-hop. Ainda não se falava no conhecimento, pelo menos não aqui onde eu vivo, mas eu já praticava, mesmo sem saber.
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O que te levou ao jornalismo e o que ele trouxe até hoje para você?
Sempre fui muito questionadora e muito próxima da escrita. Por meio do hip-hop, encontrei a minha língua. A literatura marginal, que para mim, chegou ligada a cultura hip-hop, falava o meu dialeto, questionava as mesmas coisas que eu, me propunha reflexão sobre aquilo que poderia mudar e foi essa vontade de mudar o mundo que me levou pro jornalismo. É completamente utópico e hoje penso mais em mudar alguma coisa na minha quebrada, na minha rua, enfim, começar pequeno. Mas, quando fui prestar vestibular, sabia que queria algo que comunicasse. Até cheguei a pensar em fazer publicidade e propaganda, mas o jornalismo era mais humano e eu gosto de gente, de pessoas, então, sei que fiz a escolha certa.

Depois, nunca me imaginei em outra profissão, fazendo outra coisa. Eu sou comunicadora nata. Comecei a falar com sete meses ...rsrsrs...e não parei até hoje. Se eu não puder expressar o que ta rolando comigo, com meu povo, me sinto morta. Ser jornalista, pra mim, é estar viva.
Portanto, o jornalismo me faz viver. Materialmente falando, não me trouxe nada. Mas, espiritualmente, ou seja, por dentro, me transforma diariamente. Um dia, na vida de um reporter, nunca é igual ao outro e isso que me fascina toda manhã, quando acordo para trabalhar. Eu sou uma boba, apaixonada pela minha profissão. Mas, o jornalismo me devolve a vontade de mudar, de transformar, de questionar, enfim. É uma soma, tipo, a pecinha do quebra-cabeça da minha vida.

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Conte-nos um pouco sobre suas produções literárias, do primeiro livro ao lançamento do Traficando Conhecimento.
Eu comecei a escrever ainda criança e no fundo, sabia que gostava disso, mas não tinha também essa consciência. Nunca deixei de produzir, mas, foi quando comecei a ler Ferréz que percebi que existia uma semelhança (não querendo me comparar, obviamente) no que ele falava e naquilo que eu escrevia. Foi lendo Caros Amigos que percebi que eu também poderia escrever. E aí, no jornalismo, isso se intensificou, mas, sempre quebrei altos paus na faculdade, porque sempre levava minhas produções pro estilo literário e existe uma barreira enorme quanto a isso no jornalismo convencional.
Mas foi ainda, na faculdade, que resolvi seguir o que eu gosto, o que tinha me mudado, o hip-hop e fiz o livro-reportagem Hip-Hop - A Cultura Marginal.
Fiz com a Anita Motta, que infelizmente já faleceu. Mas, tenho a sensação de que nunca mais vou encontrar alguém tão sintonizado para trabalhar como ela. Éramos uma dupla criativa e produtiva. Foi assim durante todo o curso e nosso trabalho, o livro, foi o melhor do curso de jornalismo até o ano de 2007. Fizemos o livro e eu me apaixonei ainda mais por tudo que envolvia hip-hop. Continuei com meus textos amadores e blog.
Mas, foi em 2007, depois que Anita faleceu, já tinha terminado a faculdade e tudo que conheci o Alessandro Buzo e ele me convidou para fazer parte do Suburbano Convicto - Pelas Periferias do Brasil. Era um projeto novo e foi o primeiro volume. Eu topei na hora, teve um caso dos coordenadores da ediçao vetarem meu nome porque diziam que eu era acadêmica e tudo mais, mas o Buzo é fantástico, bateu o pé e disse que eu deveria ficar. Por fim, acataram e foi a melhor coisa que me aconteceu.
Os contatos com os outros autores me deram gás pra continuar produzindo. Fiquei com o blog, projetos e oficinas de literatura na minha quebrada e lendo ainda mais. Li sobre tudo que consegui desde então, voltado a periferia e comecei a sonhar com pós, mestrado, etc
Nesse meio tempo, trabalhei num jornal, criei uma série de reportagens só de pessoas marginalizadas pela sociedade. Fez bastante sucesso. Investi no jornalismo literário e mesmo sem ter grana pra fazer uma pós, consegui com um amigo uns módulos da que ele fazia, li todos e passei a entender um pouco mais.

Daí, as produções foram aumentando, as vontades também e dos projetos de oficinas, articulações, etc, surgiu o convite pro livro Traficando Conhecimento, que veio através do Sérgio Vaz, o poeta e homem que eu admiro imensamente. Ele acompanhava meu blog e matérias na interet, sabia das novidades dos meus projetos e me indicou. A Heloísa Buarque de Hollanda, que coordena a coleção Tramas Urbanas, da qual o livro faz parte, topou investir na ideia, acreditou e o resultado está aí. São mais de 500 páginas sobre esta história. No livro, falo sobre a importância do conhecimento dentro do hip-hop e dentro da periferia.
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Quando você relembra sua vida e seus trabalhos, qual o sentimento que mais te arrebata?
Nossa. O amor. Eu amo tudo isso e não viveria sem. O amor de poder fazer, de poder participar, de ser periferia até o fim, de poder viver o hip-hop e fazer parte dessa história linda. É isso que me move. Eu amo tudo isso. Não sei definir. Mas, meus olhos brilham e trabalhar significa me divertir. Faço com muito amor. É real.

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Recentemente tivemos a notícia que o poeta Sérgio Vaz é o mais novo colunista da revista Caros Amigos. Como você vê a relação da produção literária da periferia com a luta de esquerda?
Muito conectada. Mas, acho que não se restringe apenas a isso. Vejo que ambos falam a mesma língua e lutam pelos mesmo objetivos. Por que não somar forças? Mas, a notícia de que o Sérgio Vaz é o novo colunista me encheu de alegria e do mesmo amor que acabei de falar. Eu comecei a ler a revista, conheci os textos do Ferréz e me dediquei à escrita impulsionada por eles. O mesmo acontece com Sérgio Vaz. Ele me impulsiona muito e ver que dois, dos meus escritores preferidos, estão na minha revista preferida é muita alegria. E é não só pra mim, como para toda periferia. É uma vitória coletiva que vem com muita luta. Sou apaixonada pela revista, pela postura que eles adotam e por serem hoje o veículo mais respeitado do país. Como jornalista eu sou uma admiradora incondicional do profissionalismo e da integridade da Caros. Como escritora, sou do Ferréz e do Vaz. Como pessoa, junta tudo isso que eu brindo do lado de cá. É tudo nosso.
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Nestas útilmas edições, a Caros Amigos vem estampando propaganda da Coca-cola. Alguns rappers já fizeram ou fazem propaganda para a Nike. Como você essas uniões de interesses antagônicos, é oportunidade ou cooptação, articulação ou conivência?
Acho complicado. E sinceramente, não sei como poderíamos sair fora disso, visto que é o sistema em que vivemos. É assim, se a revista não aceitar a publicação de uma propaganda da coca-cola, ela não circula, porque não tem assinantes e compradores suficientes para se manter, e se ela não aceita, corre o risco de desaparecer. Mas, o que eu acho importante, no caso da Caros, é que mesmo tendo a propaganda da Coca-Cola ou de quem quer que seja, ela mantém a mesma postura íntegra do início. Ela não vende a postura, vende apenas o espaço da página. Isso é bacana.
Quanto a fazer propaganda da Nike eu acho mais complicado, até porque, não uso Nike por motivos já conhecidos e não bebo coca-cola (mas porque era viciada e ferrei o estômago..), mas, não acho bacana o cara não ter nem o que comer, ouvir a tua música, teu grito de protesto contra um sistema que consome todo mundo e depois, você que é o ídolo desse moleque e que diz pra ele não entrar no tráfico, aparece na tv calçando Nike e pedindo pra ele comprar. Como ele vai comprar pra ser igual a você?! Não condeno, mas acho que um olhar mais cuidadoso é preciso e precioso. Acho que cooptação é uma coisa bem diferente de ganância e oportunismo. Se o rapper quer mudar alguma coisa na periferia, ele tem que ser "o exemplo" pro moleque e calçar Nnike é compactuar com o que ele mesmo combate. Acho contraditório. Embora, como já disse, não condene. Só penso que é preciso mais tato.

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O que você pensa sobre a participação de integrantes do hip hop na política?
Eu acho importante, mas também delicado. Penso que ter um de nós dentro da política é fundamental, justamente porque pode ajudar a quebrar estas barreiras, inclusive as do preconceito, mas, é preciso cuidado para não se contaminar. Quando vejo um candidato que saiu no hip-hop e está na política, penso que ele segue o caminho que se propôs quando quis mudança, mas, tem que ter cuidado e não misturar as coisas. Vejo muita gente que usa o hip-hop como trampolim e isso me entristece sobremaneira. Contudo, é bom termos nossos representantes. Me sentiria melhor votando numa pessoa que eu sempre acompanhei o trabalho e sei que faz algo pela comunidade do que votando em alguém que é elitista e nunca passou os perrê que eu passo.
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O que você pensa da produção literária atual da periferia?
Tenho acompanhado a produção da periferia e acho fantástica. Claro que nem tudo que sai é de qualidade, mas, tem um mérito tremendo. Saber que a dona-de-casa, a lavadeira, o motorista, o porteiro, enfim, pessoas como eu, estão fazendo livros e mais, estão lendo livros, é algo incrível. Eu sou apaixonada por esta cena e vejo que ela cresce e se expande a cada dia. E mais do que produzir livros e ler, ela planta a semente da consciência. As pessoas que antes se embriagavam na frente da TV, fosse com álcool ou com novelas e programas vazios, hoje se afogam em saraus e movimentos. E para isso, não precisam cruzar o mundo ou uma cidade imensa, é no bairro em que vivem. Vejo a cena como o despertar da consciência. Vejo como a efervescência cultural do gueto. E tá só começando.
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Tem um escritor que você goste muito mas que poucos conhecem seu trabalho?
Aaaahh...eu gosto de vários. Sou ratinha de biblioteca ou de sebo. Normalmente, os da literatura marginal são conhecidos apenas no meio. Poucos conhecem fora disso. Por exemplo, quando digo, no meio jornalístico, que li algo do André Ebner, que li a poesia nova do Crônica Mendes, que o Danilo Henrique fez um texto sobre Salvador e por aí vai, ninguém sabe de quem estou falando. É difícil conhecerem até mesmo Ferréz ou Sérgio Vaz. Mas, eu gosto muito de toda essa turma. Tanto do trabalho como dos escritos. Curto muito o Sacolinha, a Elizandra Souza, o Gog, que é um poeta através do rap, o professor Nelson Maca, o Alessandro Buzo, os que já citei, Ebner, Crônica e Danilo. Gosto muito de ler o Robson Canto (que tá sumido mas manda muito bem), de ler o Renato Vital, enfim, acompanho as coletâneas que os saraus lançam, que os escritores fazem e fico apaixonada.
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Tem uma frase do Gog que diz "Sonhando descobri onde podemos chegar". Qual o mundo que você gostaria de estar vivendo?
Acredito que do lado do Gog nesse mundo...rsrs...brincadeira. Ou não. Gostaria de acabar com duas coisas: ignorância e desigualdade social. Queria um mundo justo. Com distribuição de renda, e quando falo renda, penso em alimentos, com amor e com paz. Um mundo recheado de livros e de vontade de progresso, ou seja, o inverso do nosso momento. Mas, meu sonho é esse e batalho por ele diariamente.

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Qual a maior dificuldade para alcançarmos esse mundo?
As barreiras que temos que enfrentar. Nem tudo depende da gente. Mas, estamos no caminho certo. Já deixamos de empunhar as armas que distribuem gratuitamente nas periferias (armas e drogas) e agora, estamos lutando de igual para igual: com a caneta. Então, é uma questão de tempo. E muito trabalho. Como diz o Brown, temos que ser melhores duas vezes. Às vezes, desconfio que até mais, porém, estamos conquistando isso. Um exemplo é o Vaz na Caros Amigos, é essa coleção de livros da Aeroplano, são nossos blogs e saraus. Com as armas que temos, vamos lutando e mais perto chegamos do nosso mundo. Se o que eu faço mudar, pra melhor, o caminho de uma única pessoa, é uma vitória. E se, cada um dos que correm comigo conseguirem fazer isso, serão centenas de vitórias que vão se multiplicando. Pode soar utópico, mas to fazendo a minha parte. Apesar de toda resistência, como, por exemplo, o fato de eu não ter conseguido um lugar pra lançar meu lviro onde moro.

Num centro de cultura, que funciona através da lei Rouanet, querem me cobrar R$ 550 para disponibilizar o anfiteatro e a biblioteca por duas horas numa noite do dia de semana. Isso para pagar dois funcionários. Quando falo em barreiras, me refiro a estas. Um salário mínimo que sustenta às vezes famílias com até 4 pessoas, como acontece com alguns amigos meus, é R$ 510 no bruto. Ou seja, como vamos financiar cultura no nosso país?

Eu tenho que trabalhar o mês inteiro pra ter R$ 550 no bolso. Mas, quando digo que estamos no caminho certo, afirmo que se não conseguir um local, eu vou fazer o lançamento no quintal da minha casa, na rua onde moro, nos bairros. Eu vou nas quebradas e declamo no gogó. Levo b.boys pra dançarem no chão. Enfim, faço na marra.
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O que o leitor ao adquirir o “Traficando Conhecimento” pode esperar?
O leitor do Traficando Conhecimento pode esperar uma obra sincera e espontânea. Uma literatura de identificação. Conto minha trajetória, meu envolvimento com o universo do hip-hop e meu trabalho como jornalista dentro do universo do conhecimento, da literatura e ainda com oficinas e educação.
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Jéssica, muito obrigado pelo bate-papo, sou teu fã. Tem mais alguma coisa pra enfatizar? Poderia nos falar dos lançamentos do livro?
Quero agradecer a oportunidade de poder mostar mais um pouco do meu trabalho e também ao teu carinho, Ebner. Somos parceiros há uma cara e espero que ainda façamos mais coisas juntos.
Quanto ao lançamento, quero lembrar que em Poços eu vou fazer ele na marra. Com ou sem local e que em SP, ele acontece nas seguintes datas:

- 18/10 - Sarau do Binho
- 20/10 - Cooperifa
- 21/10 - Sarau Elo da Corrente
- 22/10 - Livraria Suburbano Convicto

e no Rio de Janeiro ele acontece:
04/11 - Espaço Enraizados
E pra galera que quiser conferir mais do meu trabalho e dia-a-dia, pode olhar o blog www.jessicabalbino.blogspot.com