quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Montro Invisível

Lendo recentemente uma afirmação da crítica cultural e curadora de arte Ligia Canongia, na qual ela dizia que os dois últimos grandes movimentos culturais do mundo ocidental foram o minimalismo e a pop art, lembrei da tese inicialmente defendida pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hengel, ainda no início do século 18, e anos mais tarde também seguida pelo crítico de arte americano, Arthur Danto, sobre o fim da Arte.

Apesar das razoáveis disparidades, tanto Canongia como Hengel defendem que arte sofreu uma ruptura. Canongia, apesar das suas predileções artísticas sobre a produção atual, enxerga um hiato entre os movimentos culturais que deram fama a nomes como Andy Warhol e Carsten Nicolai, e as escolas artísticas que os precederam.

No entanto, preconceitos à parte, e tratando-se de movimento cultural, não podemos ignorar um numeroso e cada vez mais atuante grupo de jovens, que seguem uma cultura avessa a teorias, estereótipos e que vem, inconscientemente, derrubando conceitos que tentam definir a produção artística contemporânea.

Herdeiros da contracultura, do movimento dadaísta, da cultura beatnik, das caligrafias rupestres e das grandes revoluções estudantis e trabalhistas dos anos 60 e 70 e da própria pop art, eles formam uma nova e desordenada vanguarda, e porque não um novo movimento cultural.
Após Marcel Duchamp e Andy Warhol, em períodos diferentes, utilizarem objetos do cotidiano e trazê-los para dentro das próprias obras, esse audacioso grupo de jovens, assimilando como propriedade o desordenado crescimento físico das cidades, descamba para interferir na arquitetura e no transporte das cidades. Apropriam-se destes espaços, sejam eles públicos ou particulares, oferecendo-lhes uma nova utilização.
A descriminada Pixação, fruto desta análise, especialmente a brasileira, surgida nos anos 80, saiu do patamar social ideológico da qual fazia parte para integrar o universo das artes ao propor uma caligrafia própria e estilizada. Assim como os mulçumanos consideram a caligrafia a mais sublime das artes islâmicas, os pixadores tem na escrita a plenitude do fazer artístico.

Muros, vagões, edifícios, pontes e residências, nada está livre da ação desses neo-caligrafistas. Tudo é um suporte para escandalizar os olhares domesticados de uma população que já não se surpreende com facilidade. Misto de arte e vandalismo, fenômeno urbano presente nas principais cidades do mundo, a pixação, talvez como nenhuma outra manifestação artística atual, exceto as instalações e performances, questiona, verdadeiramente, a finalidade da arte na contemporaneidade.

Monstro invisível, abusa da utilização do discurso, mas sem abandonar a forma, para comunicar-se exclusivamente com seus pares. É da essência do movimento produzir para questionar, e ponto. O pixador não almeja ser compreendido por todos. Por isso ignora o mercado, o público e as leis; desafia o crescimento das cidades e escandaliza a sociedade de consumo apegada ao valor e a estética das suas grandiosas edificações.

Não almeja lucro. Vive a indústria cultural, mas produz às suas margens.
Trata-se de um movimento totalmente adaptado ao seu tempo. Reconhece sua efemeridade e, também, por isso, é muitas vezes produzido em larga escala e em lugares que só dão acesso somente a um olhar mais atento.

Torna-se movimento pelo quase meio século de existência, pela importância histórica a partir do momento que esta integrada e enraizada na cultura urbana as grandes cidades.

A pixação possui um modus operandi acrobático, de produção individual e coletiva ao mesmo tempo. Flerta com a marginalidade e com o vandalismo, ao mesmo tempo em que se preocupa com a simetria e estética das letras produzidas.
O movimento criou uma nova caligrafia, democrática pela possibilidade de ser reproduzida com facilidade, cada qual a sua maneira. Forte o suficiente para, ao contrário da imensa maioria dos fazeres artísticos com exceção da música, circular nos corredores das escolas, ganhar os cadernos dos adolescentes e despertar a atenção deste público. Justamente por isso, suas características foram rapidamente incorporadas à publicidade, quando esta deseja rejuvenescer um produto ou simplesmente estreitar o diálogo com os jovens.

Então porque não qualificar esse movimento marginal por excelência como arte? Porque seus protagonistas assim não desejam? Esta seria uma boa desculpa. Mas é papel do crítico de arte apontar e identificar fenômenos culturais, e a pixação é um deles.
O mundo mudou, a arte também. Hoje, mais do que estética e aura, é necessário atitude.
O monstro invisível, ignorado e mal visto, segue forte na raiz do seu nascedouro, as rodas juvenis formada por homens e mulheres que encontram-se sufocados pela cultura de massa, pelas imposições de uma sociedade extremamente consumista e totalitária.
Em comum possuem o espírito selvagem dos que nasceram moldados para servir ao capitalismo ocidental.

Por isso, como escapatória, utilizam a sufocante arquitetura dos centros urbanos para darem seu grito de liberdade e contestação. Trata-se de um movimento que precisa ser visto, mas não necessariamente notado. Tendo o status e a adrenalina do processo criativo como isca, o movimento continua angariando seguidores mundo a fora, e mudando o modo como estes percebem as coisas. Arte é isso.
O monstro, para o bem do movimento, continua invisível. Mas até quando?