terça-feira, 22 de novembro de 2011

CAMINHOS DA NEGRITUDE NA POESIA MOÇAMBICANA

Por Simone Caputo Gomes



“Não será uma reivindicação de valores? A negritude não será uma revisão dos conceitos do Belo, a reabilitação de parâmetros culturais e cultuais, a crítica a tabus de rejeição, uma legítima defesa contra os padrões reacionários da superioridade pela tonalidade da pele, textura do cabelo, forma do nariz, lábios finos ou espessos? (...) Uma teoria da negritude através da literatura ou das artes plásticas, afinal, ofende a quem?” - José Craveirinha (1985)



Noémia de Souza e José Craveirinha


Vários pesquisadores encaram a Negritude e as polêmicas geradas em torno dela como uma espécie de período preparatório para a formação das literaturas nacionais africanas. Apoiada em várias leituras que aprofundam o tema, procurarei demonstrar as relações entre as propostas da Negritude (tomada em seu sentido lato, como evolução da consciência negra, e também em sentido estrito) e a poesia moçambicana nos anos 50 a 70 do século XX.

Fernando J. B. Martinho propõe que, nos anos quarenta e cinqüenta do século XX, ao partir para a descoberta de si próprios, os poetas da África de língua portuguesa vão lançar mão de vários “paradigmas” para melhor definirem a sua identidade, dos quais destacamos: Zumbi (líder da República dos Palmares, no Brasil), Toussaint Louverture (precursor da independência do Haiti), Langston Hughes e Guillén, citados por Viriato da Cruz no poema “Mamã negra”; Ngola Kiluanji e a Rainha Ginga (heróis de resistência ao colonialismo), citados em “Ao içar da bandeira”, de Agostinho Neto); anônimos depositários da cultura tradicional (como o desconhecido irmão maconde do poema “Se me quiseres conhecer”, de Noémia de Sousa), as vítimas da violência racista (Willie McGee, citado por Francisco José Tenreiro no poema “Coração em África”), escritores, músicos, boxeurs, atletas da diáspora americana, em suma, figuras que representavam o orgulho negro de todo o mundo.

Nesse período de afirmação, que precede a luta de libertação nacional, o intelectual africano era guiado por uma postura de adesão à condição do homem negro e seu mundo mental tinha por base os traços comuns das culturas africanas. Essa postura fraterna antecedeu a viragem decisiva para o aprofundamento na cultura nacional e a eclosão da luta armada. Segundo Fanon, no período de afirmação “os homens de cultura africana [falavam] mais de cultura africana do que de cultura nacional” e a literatura se propunha como “literatura de negros” ou do “mundo negro”.

Os autores do Renascimento Negro, da Harlem Renaissance representaram um estímulo para o indigenismo haitiano, para os estudantes antilhanos reunidos em torno da revista Légitime Défense e para os poetas que iriam expressar o projeto da négritude. Os ecos de Langston Hughes, Countee Cullen e Richard Wright (romancista) também iriam chegar aos poetas da África de língua portuguesa.

Acompanhemos o trajeto teórico e histórico da “questão negra” traçado por Souza e Silva, para depois situá-la em Moçambique.

Seguindo-se à proposta da “personalidade africana” (african personality, 1893) por Blyden (descendente de escravos oriundos do Togo) em congresso de Freetown, em 1900, H. Sylvester Williams, advogado de Trinidad, organizou a primeira conferência pan-africana, a fim de suscitar um movimento de solidariedade a favor dos negros colonizados. Participante do evento, um homem que há mais de meio século militava pelo pan-africanismo, o Dr. W. E. Burghardt Du Bois, negro americano, declarava: "Naturalmente, a África é a minha pátria." Em 1897, no decorrer do Congresso de Londres, Du Bois já afirmava: "Se o Negro devesse um dia desempenhar um lugar na história do mundo, seria graças a um movimento pan-negro."

Por sua vez, Marcus Garvey, jamaicano truculento que considerava a pele do mestiço Du Bois demasiado pálida para um negro, no quadro da Associação Universal para a Promoção dos Negros lançou a palavra de ordem de "regresso à África". Garvey devotou-se febrilmente à criação de organismos que concretizassem a idéia à qual se dedicara profundamente: um império racial africano, de que se proclamava presidente provisório, um Parlamento Negro, uma Liga Marítima da Estrela Negra. E imaginou um Paraíso em que os anjos eram negros e os demônios, brancos. Não hesitou em colaborar com os racistas do Ku Klux Klan, que como ele, mas por razões inversas, preconizavam que os Negros americanos fossem mandados para a África. A vida tempestuosa de Garvey foi marcada pela prisão e acabou obscuramente em Londres, em 1900.

O Manifesto do Movimento do Niágara, em 1905, proclamou a "igualdade absoluta entre todos os cidadãos brancos e negros", sintetizando as preocupações de Du Bois e de seu grupo. Aquele, que fundara, por seu lado, a Associação Nacional para a Promoção das Gentes de Cor (base do "Black Renaissance"), tornava-se a viga mestra dos congressos pan-africanos que se realizaram sucessivamente em Paris em 1919, em Londres e Bruxelas em 1921, em Londres Lisboa em 1923 (em Portugal, desde 1912, fundara-se a "Junta de Defesa dos Direitos de África”), em Nova Iorque, em 1927. De início, marcadamente racial, a idéia pan-negrista tornava-se uma reivindicação política. Isso se confirmou, sobretudo, depois da segunda guerra mundial, no Congresso Pan-Africano de Manchester, presidido por Du Bois, em que era nítida ainda a predominância dos anglófonos. Pela primeira vez, porém, contrabalançava os próprios Africanos a influência dos Negros americanos. Os temas anti-imperialismo e anticolonialismo eram discutidos e, pela primeira vez, explicitamente reivindicada a independência nacional, tudo isto no quadro de uma opção socialista ou socialista-marxista.

W.E.B. Du Bois (nascido em 1863 e considerado o pai do pan-africanismo contemporâneo), doutor em Filosofia e historiador cujos trabalhos revelaram aos companheiros negros um passado africano do qual se deviam orgulhar, destacou-se como voz de protesto contra a política imperialista na África, em favor das independências, e exerceu influência considerável sobre personalidades como Asikiwe Nandi, futuro presidente da Nigéria, Kwame N‘ Krumah, primeiro presidente da República de Gana (para quem o pan-africanismo foi uma das idéias-força) e Jomo Kenyatta, primeiro presidente da República do Quênia. Du Bois exerceu também profunda ascendência sobre escritores negros americanos. Seu livro Almas Negras (1903) tornou-se modelo para os intelectuais do movimento do Renascimento Negro (entre 1920 e 1940). Reagindo contra os estereótipos e preconceitos que circulavam a respeito do negro, o movimento glorificava a sua cor. Defendia a origem africana, o direito ao emprego, ao amor, à igualdade, ao respeito e propugnava ainda pela assunção da cultura. Esse programa foi revelado na revista The Nation, de 23 de junho de 1926, sendo considerado a declaração de independência do artista negro:


Nós, criadores da nova geração negra, queremos exprimir nossa personalidade sem vergonha nem medo. Se isso agrada aos brancos, ficamos felizes. Se não, pouco importa. Sabemos que somos bonitos. E feios também. O tantã chora, o tantã ri. Se isso agrada à gente de cor, ficamos muito felizes. Se não, tanto faz. É para o amanhã que construímos nossos sólidos templos, pois sabemos edificá-los, e estamos erguidos no topo da montanha, livres dentro de nós.



O humanista Jean Price-Mars, haitiano, notabilizou-se à época como o Pai do pan-africanismo cultural. Diplomata, historiador, sociólogo e doutor em medicina, inimigo ferrenho da assimilação e defensor das contribuições das culturas negras para a civilização mundial, foi um dos grandes inspiradores de Léopold Sedar Senghor. Na literatura, o romance Batouala (1921), do martiniquenho René Maran, propunha-se como um libelo contra a colonização francesa na África.
Nos Estados Unidos, a música negra - o jazz, os blues e spirituals - e a produção dos escritores negros chamavam a atenção geral para a cultura e a causa que defendiam. Langston Hughes (nascido em 1902, de pai branco e mãe negra), representante do Harlem Renaissance e amigo pessoal de Léon Damas e de Senghor, foi um dos mais expressivos poetas negro-americanos e transportou para a poesia os ritmos e a cadência da música de seu povo, notadamente o blues. "O Negro Fala Sobre Rios" (The Negro Speaks of Rivers) é provavelmente o seu poema mais famoso. Nesse texto, considera a história das comunidades negras desde o Oriente bíblico e a África até a diáspora na América. Afirmando “Eu também sou América”, Hughes assume-se como filho da África: “Todos os tantãs do mato batem no meu sangue. Todas as luas selvagens e ferventes do mato brilham na minha alma”.

Outros passos importantes para o que se chamaria mais tarde o movimento da Negritude foram a revista Légitime Défensee e La Revue du Monde Noir (“Revista do mundo negro”, 1931-32, seis números), que antecederam o jornal L'Etudiant Noir. Na ótica de Pires Laranjeira, aquelas revistas não chegariam, contudo, a “pautar-se por princípios éticos, estéticos e ideológicos que possam ser considerados de negritude”, se bem que já abordassem problemas culturais dos povos negros.

Em 1935 (segundo Pires Laranjeira e não 1934, como habitualmente se demarca), o grupo integrado por Aimé Césaire, Léon Damas, Senghor, Ousmane Socé, Birago Diop, Leonard Sainville e Aristide Maugé fundava o jornal L'Edudient Noir, órgão da Associação dos Estudantes Martinicanos na França que se dedicava a temas e problemas dos estudantes negros francófonos. O periódico (1935-1940) era definido como um jornal corporativo e de combate, tendo por objetivo o fim da tribalização, do sistema de clãs em vigor no Quartier Latin. Martinicanos, guadalupeanos, guianenses, africanos, malgaches constituiriam, assim, “um único e mesmo estudante negro". Senghor, analisando o conteúdo do jornal, apontava que várias tendências ali se expressavam: "Césaire conduzia a luta, antes de tudo contra a assimilação dos antilhanos. De minha parte eu visava, sobretudo, analisar e exaltar os valores tradicionais da África Negra".

A Négritude propriamente dita nasceu, portanto, de um protesto intelectual de negros de formação cultural européia que tomavam consciência da diferença e da inferiorização que os europeus impunham aos descendentes da África. Foi Aimé Césaire que, no seu Cahier d'un retour au pays natal, em 1939, empregou o termo “negritude” pela primeira vez e assim a definia: "la conscience d'être noir, simple reconnaissance d'un fait qui implique acceptation, prise en charge de son destin de noir, de son histoire, de sa culture; elle est affirmation d'une indentité, d'une solidarité, d'une fidélité à un ensemble de valeurs noirs". Em torno do movimento, colocado em destaque a partir da década de 30, girarão debates desde a expressão artística até a necessidade de aniquilação do sistema colonial: “O tom exaltado que as discussões sobre a Negritude atinge é produto da indissolubilidade dos aspectos políticos, culturais e ideológicos de que ela é fato e factor _ para empregar a terminologia de Amílcar Cabral”.

Inicialmente combatida pela ala mais conservadora do mundo negro, a “negritude” passou, posteriormente, a ser combatida pela sua ala mais radical. O nigeriano Wole Soyinka, sobre o movimento, ressaltava que "o tigre não precisa proclamar a sua tigritude" e o sociólogo Stanislas Adotevi (do Daomé) afirmava representar a “negritude” a "forma branca de se ser negro". Esta fala denuncia que, para estancar as ameaças de pulverização, o colonizado corria o risco de se refugiar na prática da reconstituição de uma identidade supostamente estável, fixa, fetichizando a diferença e ignorando o entre-lugar da subjetividade pós-colonial de que nos fala Homi Bhabha. O teórico afirma que a cultura de referência do lugar pós-colonial torna-se uma prática de sobrevivência e suplementaridade, reinscrevendo as "relações culturais entre esferas de antagonismo social". O conceito de cultura distancia-se, pois, do paradigma estético ocidental e emerge de formas culturais não-canônicas produzidas no ato da sobrevivência social: “Reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudança de conteúdos e símbolos culturais [...]. Isto demanda uma visão radical da temporalidade social na qual histórias emergentes possam ser escritas; demanda também a rearticulação do "signo" no qual se possam inscrever identidades culturais.

Edward Said avalia a condição pós-colonial de regiões culturais como uma "tentativa extremamente vigorosa de abordar o mundo metropolitano em um esforço comum de re-inscrição, re-interpretação e expansão dos lugares de intensidade e do terreno disputado com a Europa". Assim, a complexidade da construção identitária acentua-se quando articulada com a necessidade, conseqüência de contingências históricas, de se (re) definir a identidade em uma região pós-colonial dimensionada pela assimilação. Tal necessidade corre sérios riscos de cair no essencialismo da raça e na rigidez estática da reprodução de um sistema organizacional herdado da ex-metrópole, substituindo-se apenas o branco pelo negro. Portanto, a questão não seria a retomada do espaço que o branco ocupou na época colonial, mas a reinterpretação do lugar do sujeito pós-colonial inscrito na contra-textualidade colonial e emergente dela.

Os porta-vozes da Negritude nos anos 30, Aimé Césaire, Léon Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, manifestavam o desejo de revitalizar no plano teórico e conceitual a herança cultural africana fundada na valorização da pureza racial ou étnica, motivo maior da crítica ferrenha de Stanislas Adotevi. Também a generalização da problemática negra pelos teóricos e artistas da Negritude incomodava Franz Fanon, assim como Amílcar Cabral, que argumentavam com as diferenças existentes entre os problemas enfrentados pelos negros norte-americanos e pelos negros africanos, pois que as culturas (como a história) se desenvolvem de modo desigual, seja dentro de uma mesma sociedade, raça ou continente. Cabral defendia haver várias áfricas e, portanto, várias culturas africanas.

É no campo cindido entre a necessária solidariedade política e a improvável identidade cultural que se coloca, portanto, o centro da discussão sobre a Negritude. Propondo uma solução conciliadora, Kabengele Munanga afirma:



Na história da humanidade, os negros são os últimos a serem escravizados e colonizados. E todos, no continente como na diáspora, são vítimas do racismo branco. Ao nível emocional, essa situação comum é um fator de unidade. (...) Portanto, cada grupo de negros deve adaptar-se e reajustar o conteúdo de sua NEGRITUDE, respeitando sua especificidade social, econômica, política e racial. A de um cubano, brasileiro, sul-africano e americano não devem ser reduzidas a um denominador comum, apesar da solidariedade. Esta não-redução não impede a troca de experiências entre as vítimas e a comparação entre os estudiosos.



De um modo geral, a “negritude”, movimento oriundo de concepções tão amplamente discutidas, foi se dissolvendo em facções que se opunham ou se friccionavam. No que toca às negritudes africana e brasileira, também se construíram correntes doutrinais, culturais e estéticas não inteiramente devedoras dos modelos fundacionais, fossem eles anglófonos ou francófonos.

Pelo exposto, Pires Laranjeira, com mais de duas décadas de pesquisas dedicados à Negritude africana de língua portuguesa, destaca, no contexto de complexidade polêmica que envolve o conceito de “negritude”, a polissemia interpretativa que desencadeou desde sua nascença, assim como a leitura oblíqua, desprovida do acesso às fontes primárias, que é feita dos seus pressupostos. Sabemos hoje que o jornal L'Etudiant Noir, por exemplo, peça capital da instauração da négritude na França, não chegou a ser lido no original pelos autores de língua portuguesa que se debruçavam sobre a cultura negro-africana, embora fosse por eles referido. Posicionando-se “contra a corrente de pensamento dominante” que defendia que a Negritude de língua portuguesa não teria existido _ opinião de Mário António Fernandes de Oliveira retomada por Salvato Trigo _ , Pires Laranjeira apresenta uma seleção de textos de apoio para a leitura de uma “poesia da negritude” manifestada, sobretudo, entre 1949 e 1959, buscando demonstrar que a Négritude francófona (dos anos 30) foi assimilada, dando origem a uma Negritude lusófona que testemunha a convivência do Sócio-Realismo africano com o racismo anti-racista, pan-africano e globalizante, e a sua inevitável ultrapassagem nacionalista.

Ressaltando a obliteração ou a má-avaliação de textos teóricos programáticos e informativos, Laranjeira redescobre, recupera e reabilita documentos que iluminam a importância da negritude _ definida como “construção de uma idéia da literatura negra” - na fase de emergência de novas literaturas de língua portuguesa. O tópico e os textos-testemunho correlatos que Pires Laranjeira apresenta (de Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, José Craveirinha, Agostinho Neto, Alda Espírito Santo, entre outros) permitem reexaminar o pensamento literário africano de língua portuguesa dos anos 50, década decisiva para a emergência das afronacionalidades.

Para o estudioso, a Negritude lusófona deriva da Negritude francófona, movimento que ganhou expressão a partir da publicação do jornal L’Étudiant Noir, por então estudantes da Sorbonne. O termo foi usado pela primeira vez por Césaire, no seu poema “Cahier d’um retour au pays natal” (1939) e, mais tarde, em livro prefaciado por Breton (1947). A Negritude significa a expressão, sobretudo poética, do “ser negro”, exaltando as tradições africanas ancestrais, valorizando o modo negro de estar no mundo (Senghor) e o posicionamento anti-colonial e anti-imperialista (Césaire).

Dos textos de Damas (“Pigments”, 1937), Césaire (“Cahier d’un retour au pays natal” (1939) e Senghor (“Chants d’ombre”, 1945; “Hosties noires”, 1948; Anthologie de la nouvelle poésie noir de l’expression française et malgache, 1948) e dos fundamentos extraídos dos movimentos culturais e sociais negro-americanos, as colônias portuguesas da África puderam extrair, segundo Pires, elementos para embasar a Negritude dos anos 50, “uma das pontes culturais de passagem para os movimento de libertação” que atuaram nos anos 60. Francisco José Tenreiro incorporou ao seu Ilha de Nome Santo (1942) um universo africano de ressonâncias dramáticas e, com Mário de Andrade, lançou em 1953 o caderno Poesia negra de expressão portuguesa.

O contexto histórico-político do aparecimento da Negritude nas colônias portuguesas não permitiu a organização de um movimento, visto que coincidiu com o recrudescimento da ditadura salazarista (a partir de 1949), culminando em 1965 com o fechamento da Sociedade Portuguesa de Escritores (que havia concedido o Grande Prêmio de Novelística a Luuanda, de José Luandino Vieira), da Casa dos Estudantes do Império, da Edições Imbondeiro (Angola) e com a proibição de publicações como o boletim Mensagem (da C.E.I.), Msaho (Moçambique), Certeza (Cabo Verde), Mensagem e Cultura II (Angola). A partir dos anos 60 e até os anos 90, a “negritude” foi muitas vezes silenciada, negada ou esquecida, especialmente na sua feição senghoriana, em virtude de uma execração marxista que associava a independência do Senegal ao neocolonialismo francês. Para Laranjeira, “poucos terão tido a consciência plena, na década de 50, do seu alcance simbólico”.

Como bem o assinala Manuel Ferreira, “na prática, no terreno real dos textos, sobretudo poéticos, vamos encontrar autores vários cuja mensagem é a da Negritude (...): Marcelo Veiga, Francisco José Tenreiro, Alda Espírito Santo, Marcelino dos Santos, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Virgílio de Lemos, Manuel Lima, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos. Poetas que investem o seu verbo na revelação e valorização dos autênticos segmentos da cultura africana encarada num processo dinâmico.” Não há a configuração de um movimento, mas uma tendência revelada na poética de alguns autores africanos de língua portuguesa

Um texto de Mário Pinto de Andrade publicado em Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, “A literatura negra e os seus problemas” (1951), usava o termo “negritude” para englobar as características da poesia negra das Américas, de Césaire e de Senghor, evidenciando que se pensava, à época, a nova poesia africana em diálogo com os modelos afro-americanos e afro-francófonos, que pregavam a revalorização do negro, o anti-esclavagismo, o regresso às origens africanas, o heroísmo negro, o protesto. No final dos anos 50, tanto Mário quanto Agostinho Neto faziam a apologia do “negro de todo o mundo”, pontuando para as colônias portuguesas uma reafricanização oponente da assimilação, seja pelo pan-africanismo, pela africanidade ou pela negritude. Sabemos que essa fase de afirmação africana (que eu chamaria de protonacionalista ou propulsora dos nacionalismos) será sucedida pela fase de “particularização”, representada pelos nacionalismos oriundos da evolução da luta política.

Com os movimentos de libertação das nações africanas e a participação dessas nações no conjunto das forças do Terceiro Mundo, o conceito de “negritude” (também o de pan-africanismo e o de Renascimento Negro, concebidos a partir da diáspora e com caráter simbólico) ganhou um novo combustível dialético e novos relevos, conseqüentes do processo da luta contra o colonialismo.




Retrato de Alberto Lacerda. Pintura de Rui Filipe (1962)


O egiptólogo Cheik Anta Diop começou a defender que o essencial para essas comunidades era reencontrar o fio condutor que as ligava a seu passado ancestral. Nesse sentido, o estudo da história permitiria ao negro construir a sua nacionalidade e tirar dela o benefício necessário para reconquistar seu lugar no mundo moderno. Historiadores negros africanos (Yoro Diaw, Sarbah, Casely Hayford, Aggrey, S. Johnson, N. Azikiwe, L. Dube, Apolo Kaguw, Joseph Ki Zerbo), a partir de descobertas arqueológicas e paleontológicas mais recentes, afirmariam que a África foi o “berço” da humanidade e que o seu passado nada ficava a dever à cultura do colonizador. A corrente historiográfica que partia do pressuposto de inferioridade das culturas africanas dava lugar, assim, à chamada “pirâmide invertida” (Carlos Lopes) ou seja, à corrente historiográfica que supunha a superioridade africana com base na modificação das leituras e visões sobre a África, colocando-a como o ponto de partida para explicar a História Ocidental. A mudança dessa perspectiva começou a ocorrer um pouco antes das lutas pelas independências, nos anos 1950 e 1960, e se estenderia até o final da década de 1970. De uma forma geral, pode-se afirmar que, na segunda metade do século XX, aconteceu uma espécie de revolução nos estudos sobre a África.

Durante a Segunda Guerra e depois dela, o movimento da “negritude” ganhou uma dimensão política, aproximando-se da proposta essencial do pan-africanismo. Na atmosfera internacional da guerra, um esforço esmagador foi exigido dos colonizados para salvar uma civilização em chamas. A crise despertou no homem negro um desejo de afirmação cada vez maior. E, ultrapassando os limites da literatura, a negritude passou a animar a ação política e a luta pela independência. A criação poética era então um ato político, contra a ordem colonial, o imperialismo e o racismo. O filósofo africano Kwame Appiah ressalva que ideologias como o pan-africanismo e a negritude defendiam e (re)significavam a identidade africana.

Manuel dos Santos Lima resume, no texto “Humanismo africano e humanismo ocidental”, apresentado no Congresso L'Umanesimo Latino e l'Umanesimo Africano ocorrido na Praia, República de Cabo Verde:



O Panafricanismo, concebido no final do século passado e o movimento da Negritude no séc. XX, enquanto conceitos político-culturais globais de exaltação da personalidade africana e pleito pela causa do homem negro tiveram, no pós-guerra, grande repercussão por toda a África, pois foram os rastilhos que incendiaram a consciência dos nacionalismos africanos. Neles, cultura e revolta estiveram estreitamente associados e o seu sucesso foi tanto maior quanto os seus arautos possuíam a cultura e a língua do colonizador e as utilizaram como armas contra o próprio colonizador (...). As lutas de libertação oferecerão, assim, a visão moderna desse "humanismo" tradicional, particularmente na sua vertente política - o reconhecimento do homem africano enquanto sujeito da História que iria conduzir a Africanidade ao Afro-asiatismo e Terceiro-mundismo. (...) A rebelião sendo considerada como um acto eminentemente cultural, (...) a sua expressão literária sob o signo da Negritude foi saudada por toda a parte com grande apreço, particularmente nos meios ocidentais afectos à emancipação das colónias. (...) As literaturas africanas modernas terão então papel determinante. Será através delas, oriundas do encontro fecundo das palavras trocadas entre o mundo negro e o ocidental anglo-saxónico ou latino que se dará o salto qualitativo das artes africanas, pois as obras literárias resultantes desse intercâmbio reflectirão, pela sua temática e estilo, as preocupações sociais, políticas e culturais da África subsahariana. Nesse sentido a expressão poética das literaturas africanas ganhará acentuado relevo pois ela será constantemente um acto de liberdade, uma intenção de luta do homem colonizado, oprimido, subalterno, ou seja sub-homem. Ela evocará a memória do passado, trazendo ao palco da História o ex-Escravo e a sua terrível razão; ela exprimirá igualmente a sua imensa vontade de Futuro e o apelo nacionalista ao combate pela denúncia anti-colonial. Frequentemente a mulher negra, mãe de criados, de contratados e colonizados ergue-se no centro dessa mensagem poética identificada com a terra, como "mater dolorosa" e com a Pátria almejada enquanto aspiração, sonho. Trata-se de uma literatura patriótica que inventa a Nação africana, mentira romanesca suscitada pela paixão, mas também literatura de liberdade e abertura ao universal, a todos os homens de todas as cores e raças porque ao procurar-se o Africano teria de se cruzar com o Outro e ao encontrar-se acharia o seu irmão, o Homem de todos os tempos e horizontes.


De forma geral, a independência criou, por parte de uma nova elite política e intelectual, a necessidade da elaboração das identidades africanas dentro do Continente, e deste perante o mundo. Para isso, era imprescindível retornar ao passado em busca de elementos legitimadores da nova realidade e encontrar heróis fundadores e feitos maravilhosos dos novos países africanos e da própria África.

Em Moçambique, a partir de 1945 (até 1964, aproximadamente) começaram a revelar-se os poetas que compõem o “segundo paradigma ou segunda fase” da literatura moçambicana (o primeiro preparou o terreno para essa “poética da moçambicanidade”), designação utilizada por Carmen Tindó Ribeiro Secco, que lhes ressalta uma produção que


recebe fortes influências do Neo-Realismo, do Renascimento Negro e do Movimento da Negritude, fazendo a apologia da solidariedade, denunciando o racismo, o colonialismo, a exploração nas minas da áfrica do Sul” (...); muitos poetas preferem cantar a terra e a natureza, metáforas da “moçambicanidade”, ou o negro, exaltando o orgulho da cor (SECCO, 1999, p. 17 e 21).

Para Patrick Chabal


Embora nas colônias africanas portuguesas a negritude nunca tenha tomado a forma amplificada e exaltada que assumiu no império francês, houve um processo semelhante, mesmo que não tenha havido ‘influência direta’. A negritude é, dessa forma, a mais explícita e manifesta fase de nacionalismo cultural que se pode encontrar na literatura africana moderna (1994, p. 55).



Com base nessas óticas, Orlando Mendes e Noémia de Sousa são considerados “pioneiros da moderna poesia moçambicana”. O primeiro, mergulha sua poética na “seiva elementar/De África nos versos que digo/ E os homens saibam cantar”. No caso de Noémia de Sousa, toda a sua produção (dezenas de poemas produzidos entre 1949 e 1952 encontram-se dispersos pela imprensa moçambicana) alimenta-se das raízes africanas, é “África da cabeça aos pés”: “Eu quero conhecer-te melhor, /minha África profunda e imortal”; “Ó minha África misteriosa e natural, /minha virgem violentada, /Minha Mãe!. Destaca Maria Nazareth Soares Fonseca que a “consciência de uma negritude, ainda que sem os particularismos do movimento criado por Aimé Césaire e Léopold Senghor, na França, atravessa os versos da poeta moçambicana”. Filha de mãe negra, Noémia transfere essa maternidade para a África como um todo, elegendo a pele africana como o seu sinal: no poema “Negra”, o corpo feminino, diverso mas sintetizado numa única palavra, MÃE, acaba por representar o corpo do continente africano; no poema “Sangue negro”, também estabelecendo a homologia entre “minha África” e “minha Mãe”, o eu lírico assume o seu sangue negro-escravo e a sua origem:

E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar
dos teus tantãs de guerra chamando,
dundundundun-tã-tã-dun-dun-dun-tã-tã,
nada mais que a loucura elementar
dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos
_ para que eu vibrasse,
_ para que eu gritasse,
_par que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe!
E, vencida reconhecesse os nossos elos...
E regressasse à minha origem milenar (FERREIRA, 1985, p.92).

Em poema antológico, “Deixa passar o meu povo” (que dialoga com o spiritual Let my people go, que tematiza o cativeiro de Moisés e do seu povo no Egito dos faraós), explicita-se a relação da poética de Noémia com os pressupostos do Harlem Renaissance:

Noite morna de Moçambique
E sons longínquos de marimba chegam até mim
_certos e constantes _
Vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
Abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
Spirituals negros de Harlem.
“Let my people go”
_ oh deixa passar o meu povo (...)

Nervosamente,
Sento-me à mesa e escrevo...
(Dentro de mim,
Deixa passar o meu povo (...)
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar (...)
Misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças (...)
Pegando na minha mão e me obrigando a escrever
Com o fel que me vem da revolta. (...)

E enquanto me vierem de Harlem
vozes de lamentação
e os meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
“let my people go”

OH DEIXA PASSAR O MEU POVO
(Poesia negra de expressão portuguesa, 1953).

A poeta coloca em diálogo “os sons que invadem a noite moçambicana vindos dos bairros pobres de madeira e zinco” e “as vozes negras que entoam, no Harlem distante, a conclamação à liberdade”. Celebram-se “os cantos, as vozes negras americanas e de Moçambique, nelas repercutindo, por certo, os motivos sonoros de Guillén que cadenciam feições de uma identidade africana”. A denúncia e o protesto anti-colonial apresentados em voz de mulher e tomando o corpo da mulher como símbolo de todas as formas de opressão e violência, já são patentes na poesia de Noémia, em simultâneo com a valorização da cultura africana. A evocação da África-mãe, “ngoma pagã”, com seus batuques frenéticos, sua “feitiçaria”, suas “humilhações” e “canções escravas”, ecoa num grito a um só tempo de acusação e “inchado de esperança”.

José Craveirinha considera Noémia “o primeiro poeta verdadeiramente moçambicano no alto sentido da sua poesia e pelo nascimento. E acrescenta: “Noémia de Sousa foi quem soltou o primeiro canto da tragédia nocturna dos negros que trabalham na remoção dos dejectos da população dos subúrbios: os zampunganas. (...) só nós, os africanos das ruas de areia (...) só nós conhecemos a profundidade do soluço do zampungana”.

Noémia, cantora dos esquecidos, voz fraterna (“Nossa voz”), vai dar voz aos párias da África, vai exaltar a (es)cultura popular (“pau preto que um desconhecido irmão maconde talhou”), fundando o seu canto em sintonia cultural e política com movimentos que envolviam a causa negra em outras partes do mundo: o Renascimento Negro americano, o Negrismo cubano de Nicolas Guillén (dele é a epígrafe da antologia Poesia negra de expressão portuguesa, 1953, em que Noémia colaborou), o Regionalismo brasileiro de Jorge Amado, o Neo-Realismo português.

Para Craveirinha, Noémia é “o bardo dos Munhuanas, das Malangas e Xapamanines” e sua poesia, “mocharisse dja péla dambo”, ou seja, o pássaro que, na hora do crepúsculo, solta o seu mais belo canto.

Publicações como Msaho (1952), O Brado Literário (1955, suplemento do jornal O Brado Africano, que vinha resistindo desde a sua fundação, em 1918), a revista Itinerário (1955), do Suplemento Paralelo 20 (11 números, de 1957 a 1961) e o Suplemento do Notícias, “Moçambique 58/panorama literário e artístico moçambicano” (16 números até 1959) vão impulsionar uma poética da “voz real de Moçambique”, que se nutre de posturas e valores africanos iluminados pelo substrato filosófico do pan-africanismo, do Renascimento Negro e da negritude. Em plena luta armada surgem o jornal A voz de Moçambique (1961-1975), o “Despertar” (Suplemento do Notícias); em Lisboa, a antologia “Poetas moçambicanos” (1960), organizada por Luís Polanah, incluindo textos de poetas guerrilheiros da FRELIMO, como Sérgio Vieira; em 1962 surge a antologia de mesmo nome, organizada por Alfredo Margarido e também editada pela C.E.I, que esteticamente deixa entrever ligações com diversas correntes literárias como o Neo-realismo, a negritude, o Surrealismo, entre outras. Em 1967, já no âmbito dos órgãos culturais da FRELIMO, surge a coletânea Breve antologia de literatura moçambicana, organizada por Fernando Ganhão, cuja introdução fundamenta o conceito de literatura moçambicana como representação da realidade da luta de libertação nacional, atestando a passagem que se dará, nos anos 60, entre uma poética da valorização do “colonizado”, que “é integralmente na sua poesia o negro moçambicano (...) vítima da opressão” e a poética dos guerrilheiros, que se consubstancia nas antologias publicadas pela FRELIMO de 1971 a 1977, sob o título de Poesia de Combate.

Voltando à questão da apropriação dos pressupostos ou da poesia da negritude pelos moçambicanos, Virgílio de Lemos, outro dos fundadores da revista Msaho, deixa clara a adesão à proposta de negritude em “Cantemos com os poetas do Haiti” (1960):

Tu, Baby, e os poetas nossos irmãos
Que escrevem cânticos no Haiti,
Sabem da vida incerta e vazia
Dos negros das ilhas e Américas
Dos que sofrem em África e Oceania. (...)

Lembras-te dos segredos nas entrelinhas
Dos poemas verticais da Noémia de Sousa
Sempre em papel amarelo?

Cantemos com os poetas do Haiti
Uma canção amarga que se não perca
Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui
Os segredos são iguais, fundos de angústia,
E os poemas verticais, também de desespero (Apud FERREIRA, 1985, p. 155).


Nascido na ilha de Ibo e criado em Lourenço Marques, atual Maputo, Virgílio ficou conhecido no Brasil com a antologia Eroticus moçambicanus, que reúne poemas escritos entre 1944 e 1963, publicada em 1999 pela Editora Nova Fronteira. Poeta insular, ligado ao Oceano Índico, Virgílio é filho de uma família de antigos funcionários da Coroa portuguesa que faziam o triângulo Lisboa-Rio-Goa. Cresceu assistido por mulheres macuas-suailis e carrega, por isso, além da herança ocidental, traços culturais do Oriente. Na juventude, estudante de Antropologia e Literatura Inglesa na Universidade de Witts, veio a incorporar o jazz negro do bas-fond sul-africano às suas vivências. Leitor inveterado, instigava-o a constelação de heterônimos de um poeta português falecido alguns anos antes e então pouco conhecido, Fernando Pessoa. Talvez por isso tenha estreado em livro com um heterônimo, Duarte Galvão, um tipo múltiplo, capaz de captar a negritude, de ser branco, chinês, crioulo, índio maia e amazônico, ou indiano. Hoje, Virgílio de Lemos diz que Duarte Galvão, que conheceu a poesia de Léopold Senghor e Aimée Cesaire, intuía que a negritude podia ser utilizada como arma de libertação do homem. Seus poemas “Negro” (1952), em que tematiza a escravidão, “Paisagem” (1960, em que o protagonista do fio narrativo é o “negro gigante que se vai mirrando” nas minas do Rand), “Mãe negra” (1960), “Essa negra Tembê” (com ecos de “Essa nega Fulô”, de Jorge de Lima) e “Native Song nº 1” (1960, com ecos de Noémia) vão cantar o negro de todo o mundo e de todos os ofícios:

Aqui, José Mulato
Nos ritmos de sambas e brasis
Castro Alves dos lados do mato,
Ah Zixaxa e mafalala
Ah, Xipamanine e Munhuana,
Vai sonhando novos universos (...)
Aqui os sonhos cresceram
Porque os poemas verticais
Foram lidos, não se perderam.
Noémia escreveu poemas vigorosos
Que religiosamente se leram. (...)
Os negros que fumam ópio
e bebem canhos ou bagaços,
esses, Irmãos, não sonham (...);
mas os que fazem blocos de cimento,
os que vivem nas construções,
os que cantam no cais,
os que perfuram as minas do rand,
os que vendem peixe no bazar (...)
esses e só esses devem contar
para os grandes sonhos de luar,
em que as danças acordam anseios.
Anseios de sonhar com outro luar,
com Mary Anderson e Nova Orleans (...)
Irmãos dos versos que escrevi.
(APUD FERREIRA, 1985, p. 158-9).

Manuel Filipe de Moura Coutinho, também colaborador d’O Brado Literário (1955-7), sintetiza o sentimento dos colaboradores do Suplemento, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Marcelino dos Santos, Rui Nogar, Duarte Galvão-Virgílio de Lemos, Fonseca Amaral e Carlos Maia:

Conheci hoje o negro que há em mim (...)
Sou negro:
Negro como é negra a noite,
Negro como as profundezas
D’África.

Irmão sempre colonial (...)
Negro Guillén, Hughes, Villa, Huerta
Negro intelectual
José, meu pobre engraxador




(1957, Apud FERREIRA, p. 164. A estrofe em negrito é de Langston Hughes, no poema “Negro”).

Marcelino dos Santos (Kalungano), poeta e militante da revolução, exalta a “Mãe negra” (poemas “Mamã negra” e “Sonho da mãe negra”) e evoca Langston Hughes, Césaire e Guillén no poema “Onde estou”:

Não
Não me procureis
onde não existo (...)
se eu estou aqui
bem vivo
na voz de Robeson e Hughes
Césaire e Guillén
Godido e Black Boy renascidos
nas entranhas da terra.

Em sua poética é possível observar que não há ruptura com a estética da negritude, mas transmutação dos propósitos mais genéricos da conscientização negra e /ou da negritude ao mergulho na especificidade das transformações políticas moçambicanas (adiante veremos que a poesia de Sérgio Vieira apresenta trajeto semelhante): “Nas minhas veias/ Corre o sol da terra austral (...) Ó sol de Moçambique”.

José Craveirinha, o “velho cravo”, escreve o seu texto poético (ou o seu “canto xi-ronga”, seu “Manifesto”) com “o sangue da [minha] mãe”: o “grito negro” (poema dos anos 40) da Mãe-África percute na volúpia dos tantãs do xigubo. É o rosto do homem negro que se destaca no auto-retrato (narcísico), tendo como cenário a paisagem moçambicana e como fundo, o som dos versos que tchaiam:

meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros (...)
e minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro(...)
Oh! E meus dentes brancos de marfim
ouros brilhando na minha negra reincarnada face altiva.

São unânimes Maria Nazareth Soares Fonseca e Carmen Tindó Secco quando relacionam a fusão de sua vida e obra com a História de Moçambique. Sua poesia opta por glorificar o homem africano, mas concebe a africanidade a partir do encontro de culturas, de mestiçagem tendo por pressuposto, como expõe Appiah, uma constante reformulação e reflexão em torno dos interesses que movem as afirmações identitárias culturais e políticas. Craveirinha busca a afirmação africana e moçambicana, levando em conta, porém, a interpenetração cultural e, por conseguinte, a permanente reestruturação do conceito de africanidade. A partir dessa perspectiva, a produção de Craveirinha se apresenta como paradigmática, pois sua poesia explora, profundamente, as relações entre literatura e cultura africana, sem cair na dicotomia do próprio e do alheio . A poesia de Craveirinha, avessa a rótulos e periodizações limitadores, relacionou-se de modo transformador e crítico com as principais correntes e culturais e políticas de seu tempo – o neo-realismo, os movimentos negros americanos, a negritude, a luta pela libertação nacional – sem jamais permitir que o compromisso com o mundo ofuscasse a qualidade do seu texto.



No início dos anos 50, Craveirinha, Noémia de Souza, Rui Nogar, Rui Knopfli, entre outros escritores moçambicanos, deram início a uma literatura “fundacional” de poética transgressora, que procurou africanizar as heranças ibéricas e domar a língua do colonizador, indicando o pertencimento à cultura moçambicana, com seu valores e expressões próprios, marcando a escrita com procedimentos e sotaques da oralidade.

A opção de Craveirinha pela África manifesta-se desde as suas primeiras criações, conforme declara em entrevista a Chabal (1994, p. 98): “Quando opto por Moçambique, eu estou a optar pela África”. A vertente social, característica marcante das literaturas de língua portuguesa segundo Patrick Chabal, encontrou respaldo nos movimentos de conscientização do negro ocorridos nos Estados Unidos e na Europa, levando a uma redescoberta do continente africano e autores como Craveirinha, mesmo que não engajados diretamente a um desses movimentos, escolheram a via de autovalorização da cultura africana como contestatória da obliteração violenta imposta pelo sistema colonial.

Assim, José Craveirinha assume alguns dos pressupostos do movimento da negritude ao exaltar o orgulho de ser negro, com os valores e formas de expressão, sobretudo oral, que a escolha acarreta. Seu primeiro livro, Xigubo, obra de forte apelo identitário africano, abre-se com um poema dedicado a Claude Couffon, teórico da Negritude, embora explore também elementos da poesia neo-realista e da poesia revolucionária, sem limitar-se a qualquer pressuposto que a dirija. Em construção paralelística, ao som do tambor, a dança guerreira do tradicional xigubo, à volta da “fogueira amarela”, “funde os negros” das tribos de ontem (“velhas tribos”) e de hoje (“aqui outra vez”), com suas “viris e ferozes catanas afiadas” para defender a mátria (“minha mãe África”). A onomatopéia (“Dum-dum!/Tantã/pés batem/tambores batem”), o ritmo da “volúpia do xigubo” aproximam voz e letra gerando a afrodicção do poema. “Tantãs tribais” trazem à cena “navios negreiros” e as azagaias rasgam o véu da noite colonial (“a noite africana”) no poema “África”, para mostrar ao mundo os “altivos falos de ouro erectos”, “eros do (meu) grito”, azagaias do verbo craveirínhico _ o moçambicano (“rubi do nosso mais belo”) “canto xi-ronga”.

Em outro ensaio decisivo para o estudo da relação da poesia de Craveirinha com a negritude, Rui Baltazar localiza, poema a poema, aquele “traço dominante” , definindo o Velho Cravo como “um poeta negro no cantar e na forma como parece ter resolvido o problema das suas origens”.

Nos poemas “Mãe” e “Sangue de minha mãe” (Karingana ua karingana, 1982) Craveirinha testemunha, pela via materna, uma natureza africana, num encontro com as raízes matriarcais tão característico às sociedades da África. As “maternas palavras vivem e revivem no “sangue” do eu lírico, ao lado das sementes do pai, “emigrante português”, “português puro”: o fruto prefere o aspecto “seminegro” ao “semiclaro”, para “jamais renegar/ um glóbulo que seja do Zambeze”. A opção está feita. O corpo do eu lírico, identificado por inúmeros biografemas, confunde-se com o corpo do irmão explorado nas minas de carvão, do “cão” que apanha do patrão nos porões dos navios que deportam “barrigas negras” para S. Tomé, do negrinho “órfão de mãe ainda viva” exportada para as roças, da carga humana que “não tinha história” incendiada no barco Save, da “pura” mulata Margarida em “sua décima quinta blenorragia”, do menino vadio e com fome assassinado no Chamanculo (passagens de Xigubo) e, em síntese, coletiviza-se: “nós, os negros, as mulatinhas/e as negras”. Esse Eu, tendo escolhido uma identidade negra, assim se define: “Eu sou carvão”, Eu (sou) chefe zulo/ Eu azagaia banto/Eu tambor/ Eu suruma/Eu negro suaili/ Eu Tchaca/ Eu Mahazul e Dingana/ Eu Zichacha/ Eu xiguilo no batuque” e, em resumo, “nas fronteiras de água do Rovuma ao incomáti/ Eu-cidadão dos espíritos das luas/carregadas de anátemas de Moçambique”.

José Craveirinha, ao assumir em Xigubo, com ímpeto e orgulho, um Eu múltiplo, representante da diversidade etnocultural moçambicana e africana (“minha voz estentórea de homem Tanganhica/do Congo, Angola Moçambique e Senegal”, p. 34), assume também os anátemas que se abatem sobre a África, especialmente a negra, vítima de feridas mais profundas: “céu onde existe o tal Deus que não sabe/línguas de África línguas de África línguas de África/ e só sorriem anjos brancos de asas impossíveis de arminho/(...) ainda não há lugar par meninas puras da cor/das meninas filhas e netas de mães e avós pretas” (Poema “Um céu sem anjos de África”).

Possante, como sua estentórea voz, é o grito de indignação de Craveirinha, cuja poética vai, em progressão, erguendo-se como uma voz que passa do particular ao geral, do corpo individual ao corpo de Moçambique, da África _ sua paisagem física (descrita com sensualidade e deslumbramento panteístico), humana (mulheres, crianças, jovens e velhos negros, que emergem das casas de caniço, das ruas de areia e da miséria, afastados da cidade branca), suas línguas que irrompem no português legado para dizer “as belas terras do [meu] áfrico País/e os belos animais (...) dos matos do [meu] País/e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes/e as belas aves dos céus do [meu] País/e todos os nomes [eu amo] belos na língua ronga/macua, suaíli, changana,/xítsua e bitonga/ dos negros de Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca/Zongoene, Ribáuè e Mossuril”, e para transformá-lo em patrimônio escrito dos africanos, utlilizado para expressar as suas tradições.

O “Camões da Mafalala” (como o denominou Mia Couto em 1991) recupera a oratura moçambicano-africana (“Quero ser tambor”) na sua maneira de conceber a poesia como profecia e prática narrativa: “Este jeito /de contar as nossas coisas/à maneira simples das profecias/_ Karingana ua karingana” _ é que faz o poeta sentir-se gente”. Karingana ua karingana é considerada uma obra de “interrogação ativa dos valores da identidade moçambicana”, poesia narrativa em que a expressão lírica busca a proximidade com a oralidade e, ao mesmo tempo, em que a ironia mordaz atua como poderosa estratégia de reflexão em torno da condição africana no mundo: no poema “Fábula”, por exemplo, Craveirinha reescreve a fábula “A rã e o boi”, de La Fontaine, em contexto africano de carência; no poema “Ninguém”, desvela o preconceito do empreiteiro contra seus trabalhadores negros, reduzidos a “ninguém” na hora da morte (“_ Já caiu alguém dos andaimes?/_ Ninguém. Só dois pretos”).

O texto “Quando eu penso na América” ou “Poema para Doreen Martin” traduz, possivelmente, a síntese do pensamento craveirínhico no que diz respeito à apropriação dos símbolos e heróis da negritude para representar, para além da questão rácica, a conquista, pelo africano, de um lugar de sujeito na História:

Na Mafalala quando eu penso na América
Não invejo os arranha-céus de manhattan
Não me deslumbram as luzes da Broadway (...)
Na Mafalala quando eu penso na América
Um som de ‘spiritual’ geme no tal rio Mississipi
Um belo tiroteio desconsidera a vida de um transeunte (...)
Mas na história inconfundível
De Nova Orleães e Harlem
Estão lá Armstrong
Duke Ellington
Bessie Smith
Jessé Owens
Joe Louis
E Richard Wright.
E mais em toda a parte estão
Lá todos e também Ella Fitzgerald com suas vozes
Saltos
Murros e livros
A lembrar os velhos e as crianças nas machambas de algodão
E sem falta estão lá todos os negros do mundo nos ‘juke-box’
A tocar barato o que uma simples moeda quiser (...)

Mas lembrem-se que Jesse Owens foi aos Jogos Olímpicos
E contra todas as expectativas ganhou 4 medalhas de ouro
E sabem onde foi isso? Mesmo em Berlim.
Joe Louis na desforra bateu Max Schmmeling por K.O.
Armstrong dispara o trompete em cheio numa Coca-Cola
Duke Ellington faz o piano colaborar em todos os problemas
De jazz enquanto um prateado Cadillac obsceno atravessa
A ponte de Brooklin como se fosse um insulto (...)

Mas as crianças que nascem nos becos de Xipamanine
Ou nos irrespiráveis sótãos do Harlem (...)
Quando crescerem não se limitarão a cantar por cantar
Não subirão ao ringue pelo simples fato de serem pugilistas
Nem ganharão os 100 metros só por uma questão de atletismo (...)
E para já
Todos os membros da Klu-Klux-Klan
Sabem mais ou menos o que eu sinto na Mafalala
Quando eu penso na pobre e nua Marilyn
Milionária da América do Norte.

Homenageando as figuras negras de destaque da História, na música (vozes do jazz, blues e spirituals, ao lado da música popular moçambicana de Daíco e Fani Fumo, dos timbilas e xipalapalas) e no esporte (saltos e murros – Joe Louis, herói de vários poemas, “cangaceiro do ringue” comparado a Virgolino Lampeão), Craveirinha relembra as vitórias em condições adversas para forjar a resistência da identidade africana e moçambicana: “o Daíco executa agora resvés no coração da pátria/de improviso a resistência da última posição/no corpo inteiro em contracanto”.

Do universalismo negro ao universalismo humano (toda a humanidade que sofre) move-se o canto do poeta-patriarca Craveirinha: da Mafalala, Moçambique, para o mundo:

Ah, Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
E negros de toda a parte.

José Craveirinha representa a mais alta expressão da moçambicanidade, porque sua poesia permanece vigorosa, tendo explorado as potencialidades dos movimentos culturais e ideológicos do seu tempo, extrapolando escolas e rótulos, operando uma interlocução com a boa poesia contemporânea sua, produzida no Brasil, na América ou na Europa, especialmente a de cariz identitário. Como enfatiza Fátima Mendonça, o

elemento de afirmação nacional que emerge, desde o inicio, da poesia de José Craveirinha, é pois gerado e produzido por um real definido e marcado, porventura apreendido pelo poeta numa fase em que a sua configuração não é perceptível a muitos: o poeta limitou-se a antecipar-se no tempo, captando e prevendo, assumindo-se finalmente como o “fabricante de vaticínios infalíveis” (...), o primeiro escritor a apresentar o espaço geográfico moçambicano em termos de nação. (...) Com ele surge pela primeira vez na poesia moçambicana escrita a afirmação nacionalista de comunidade e território: sob a forma de metonímia e através da enumeração sucessiva de quatro das grandes culturas obrigatórias – chá, sizal, tabaco e algodão – provoca-se a imagem de um Moçambique delimitado por três regiões suficientemente distanciadas entre si, às quais se associa cada um dos termos enumerados: sizal ao Norte, chá ao Centro, tabaco a Oeste e algodão como que a estabelecer a união, um pouco por todo o território. É pois José Craveirinha quem pela primeira vez projecta na área poética a imagem de uma comunidade de território a opôr-se à desintegração espacial que a política colonial preconizava através de slogans como “Portugal várias raças uma só nação.



Faltavam 12 anos para que se reunisse o I Congresso da FRELIMO em Dar-es-Salam. De 23 a 28 de Setembro de 1962, pela primeira vez na história do povo moçambicano, se juntaram homens de todas as partes do país assumindo-se como cidadãos de uma pátria com território comum, dispostos a expulsar o invasor. Nos vários documentos emanados do Congresso surge insistentemente a mesma ideia de comunidade de território que o poema de José Craveirinha já anuncia.

Essa poesia da “moçambicanidade” (“não sou luso-ultramarino/sou moçambicano”), que opta por percorrer uma africanidade de raiz ora mítico-telúrica ora mítico-negritudinista, vai forjar e sedimentar os laços nacionais que levarão a uma poética guerrilheira, engajada ao ethos revolucionário da FRELIMO (cuja criação Fátima Mendonça chama de “forma superior deste processo de organização” - vislumbrado por Craveirinha desde “Chamamento”, 1950) e à idéia de “nação imaginada” (Benedict Anderson), “Nação que ainda não existe”, no entanto é profetizada em “Sia Vuma”.

A par da produção de outros poetas que poderíamos associar a esse pólo da afirmação nacionalista, a poética de Sérgio Vieira representada pelo livro Também memória do povo (1983, com belíssimos desenhos de Malangatana e Chichorro), parece-nos bem demonstrar como, a princípio herdeira de um discurso da negritude em poemas datados dos anos 50 e 60, evolui numa passagem para a poesia de combate, colando-se ao discurso da luta armada (poemas datados dos anos 70 em diante). Observemos:

De teus seios negros
nasceram os rios do povo negro
Eurídice
e o sol e o fogo
foram sol e fogo
nos teus olhos de África
Eurídice(...)
minha África-Eurídice


(VIEIRA, 1983, p.9. “Poema para Eurídice Negra”, 1958).

Sérgio Vieira, com seu “coração de negro” (“Poema”, 1960), canta, no início da década de 60, “os corpos negros/das crianças negras” (“Quatro cantos para Ana Maria”, 1961) e a “terra Negra” (1961). De 1965 a 1969, os laivos negritudinistas cederão lugar à contundência de longos poemas que tematizarão a guerra, com riqueza de detalhes, e a morte de Eduardo Mondlane, como “Pranto em forma de poema no luto do nosso povo”, em que coros de mulheres, velhos, crianças, poetas, camponeses, misturados aos gritos dos operários e mineiros, em síntese, “todos órfãos”, prantearão, “de rovuma ao maputo”, “aquele que transportava o povo”. Várias etnias moçambicanas (em voz coletiva – nós) comporão esse mosaico que se intitula “Povo” _ makondes, macuas, shanganas, nyanjas _ na “Pátria” concebida como “sinfonia das diferenças”. A postura anti-colonialista e anti-imperialista agora é explícita (“nós compreendemos que/o colonialismo português e o imperialismo/deviam morrer em moçambique”) e “os filhos de moçambique” (poema “Nós”) são o “braço armado do povo”, com “bazookas” e “metralhadoras” para “libertar a pátria”. O poema é o “grito” da vontade do povo, “cântico de martírio”, “canto de esperança”, “cântico da liberdade”.

Morto Samora Machel, no quarto e último movimento do poema (Alvorada), a proposta é: “A LUTA CONTINUA”, com a esperança de que, ao vermelho do sangue, substitua-se o “vermelho das buganvílias” ou da “flor de sangue”.

Nos poemas datados dos anos 70 em diante (os mais recentes não são datados), o poeta começa cantando a memória dos navios negreiros (“No porto de escravos junto do mar nesse ano de mil novecentos e setenta”), a humilhação (“o grito/ de negro ignorante, ignorante, iignooraaaanteeee!”) e o sofrimento escravo (“negros” “de corrente nos pés”). E segue cantando, cronologicamente, o momento em que “ninguém mais gritou/negro ignorante”, o tempo em que prevalece “a vontade do Partido”, criam-se “as acácias vermelhas”, “a cor da realidade” a “implantar na Pátria” _ “na manga e na Lugela e no Xipamanine e no Zambeze” (a comunidade do território) _ a “Nova Sociedade”; empreendem-se as “batalhas”, o “combate popular”, ouve-se “o camarada ideólogo”, “Marx”, aprende-se “a ler e a escrever”, cultua-se “as tradições da luta” e faz-se “a revolução”. Em resumo, “aprendemos a nossa história (...)/ descobrimos a geografia da pátria /nas lutas que travámos(...) /no mapa livre de Moçambique”.
Em poema de 1979 (“Um apontamento pequeno porque tu ainda és pequeno”), o poeta fala ao filho bebê, “nascido Moçambicano/crescendo no socialismo”, metáfora do “amanhã” e do “povo que continua” a “epopéia do Homem”, “criando o tempo/em que o Socialismo Avançado/se transforma em Comunismo”, o TEMPO NOVO.

No poema final, volvendo circularmente ao começo, “primeiro momento feito de passado e agora culminando em futuro”, o eu lírico relembra “imagens /de chicotes erguendo-se, /de palmatórias despedaçando,/de corpos feitos martelos,/picaretas,/instrumentos escravos de produção”, evoca o Partido (“antigo como a História, /e a sua origem/perde-se com o nome do primeiro escravo/que com o sangue/gritou basta”) e segue para a conquista do “verde dos campos, já nossos,/ao ouro, das minas já conquistadas”, na “fusão do negro e branco do Povo unido,/erguendo a Paz”.

Nesta altura, nossa voz (a de Sérgio e a minha) se cola à do Camões da Mafalala e, em coro, pronunciamos todos:

“Sia Vuma!”








Simone Caputo Gomes
Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1988). Atualmente é Professora Doutora da Universidade de São Paulo, de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.