Foram 45 minutos para cruzar de um mundo para outro. Subi num barco na terra do colonizador – na Península Ibérica – e desci do outro lado do Mediterrâneo – África! O desejo do começo da viagem era um pouco inocente: queria ver se me identificava com as tais raízes africanas. Sou uma brasileira amarelada: avô italiano, não sei quem português… mas foi sempre o bisavô da avó, um negão de quem nada se sabe, que me orgulhou mais na genética familiar. Com o sangue dele me joguei no samba, capoeira e nesta viagem de quase sete meses pela África.
Depois do Marrocos, Cabo Verde. Chegar lá foi quase como pisar na Bahia: cores, sorrisos, sonoridades que já conhecia. A semelhança com o Brasil tem origens claras. Os portugueses chegaram nas ilhas desabitadas e desérticas quarenta anos antes de pisarem em Porto Seguro. Ali eles criaram um entreposto onde reuniam escravos e ensinavam um pouco de português para vendê-los melhor na Colônia Brasil. O arquipélago se orgulhava de ser o filho africano preferido de Portugal e cresceu escutando do pai que eram “brancos de segunda” ou “pretos de primeira”: por lá, ser branco virou símbolo de status.
Assim, a miscigenação se deu como bem conhecemos, mas a língua teve caminho diferente. Em Cabo Verde, o português é estudado na escola, mas a língua materna é o crioulo. Ao contrário de nós que crescemos falando só português, verdade? Pois, eu escutava uma entrevista que havia acabado de gravar quando um amigo cabo verdiano chegou perto e comentou: “ela está a falar em brasileiro!”. “Como?”, retruquei confusa... “Tas a ver, ela fala ‘a gente’...” e assim ele foi pontuando expressões derivadas do português mas que são... ‘brasileiro’ até concluir: “ela deve assistir a muita telenovela”. Assim a semelhança entre o lá e cá que se inicia nos tempos coloniais é hoje estendido pela presença forte da TV Globo e da Rede Record que ‘ensina’ nossos primos a falar a nossa língua e entender o nosso mundo.
Com o sentimento de pertencer, de entender o outro, cruzei para o Mali. Sob os 41 graus esperava um ônibus numa “tipo rodoviária”: era uma rua de barro bem seco com um ônibus onde por umas três horas foram subindo caixas e trochas para a viagem. Embaixo se vendia de tudo: pilha, leque, pinça, desodorante... Num momento as crianças fizeram um roda ao meu redor: elas brincavam e me olhavam até que a mais miudinha começou a franzir a sobrancelha. Ela dava passinhos para trás, sem tirar o olho de mim, sem tirar o olho da branca... Ela foi andando até não poder mais com aquele ser tão esquisito... e então virou e saiu chorando.
Esta cena se repetiu algumas vezes e em Pais Dogon, onde o tal ônibus me levou, eu era apenas uma humana desmelaninada. As pessoas me perguntavam: “de onde você é?” “Do Brasil”. “Ahhhh.... da Europa” respondiam. “Não, Brasil: futebol, Ronaldinho, Lula, samba”. “Europa!” Acostumada a viajar pela América Latina, entre os hermanos, ali eu vivia uma sensação absolutamente desconhecida: eu era a colonizadora, o meu inimigo histórico. Eu já não tinha nenhum tatataravô negão, nenhuma ginga, nenhum samba. Eu era só a branca. Ponto.
O desconforto de não ser entendida nem me ver nas mulheres com que falava chegou num abismo onde eu jamais havia estado. Um dia conversando em Pais Dogon Hawa, a segunda esposa da casa onde eu estava hospedada me perguntou: “mas lá onde vocês brancos moram tem luz, tem pia, tem fogão... vocês não tem trabalho nenhum, né?” Naquele momento eu paralisei e entendi que a incompreensão era de mão dupla e que eu não conseguiria explicar – não em francês – que eu não acordava as 6h da manhã para tirar água, depois pilava grãos, preparava comida para o marido como ela... mas que eu escrevia um milhão de e-mails por dia, as vezes perdia a noite editando, fazia reuniões, ficava presa no trânsito...
Cheguei na capital Bamaco com um mal estar de quem pela primeira vez encontra um pré-conceito se formando dentro. Lá conheci a socióloga Awa Meite, desabafei e ela disse: “Eu acho que cada sociedade tem que fazer a sua própria análise: eu entendo que seja difícil entender a poligamia, a circuncisão, o fato de que as mulheres trabalhem muito mais do que os homens... mas quando eu vou a Europa e vejo a quantidade de mulheres que vivem sozinhas, que criam seus filhos sozinhas... eu também acho estranho”. Eu ali viajando sozinha, trabalhando sozinha por um segundo me vi com os olhos de Awa e também achei muito estranho o nosso mundo moderninho.
Digerindo a troca de papéis – colonizada, colonizadora - pousei na África do Sul, na terra onde os ‘homens civilizados’ fizeram uma das maiores crueldades do mundo. Na postura de muitos negros ainda se vê a segregação: ombros encolhidos e tom de voz baixo. Eu, que nos últimos meses era vista como colonizadora, me envergonhava mais que nunca de meus antepassados europeus. Para entender melhor a história segui para o Museu do Apartheid. A curadoria dele – sensacional! - é feita como nos tempos do regime: bancos só para brancos, entradas separadas para os ‘puros’ e para os pretos e coloridos. Paguei então o meu tíquete, recebi uma olhada do negro que cobrava e que então me entregou o meu bilhete de entrada. Nele li “não branca”, peguei a porta direita da entrada do Museu – “black and coloured” - e voltei, então, a ser brasileira.
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Eliza Capai viajou por quase sete meses pela Africa passando por Marrocos, Cabo Verde, Etiópia e Africa do Sul. Do caminho ela gravou 40 horas de material e várias entrevistas com mulheres das mais diferentes culturas, cores e realidades. O material será editado como um longa metragem que discutirá as possíveis mulheres contemporâneas, identidade e as relações que estabelecemos com os Outros/Outras. Para bancar o roteiro e edição do documentário o projeto “Africanas” esta sendo financiado coletivamente: a partir de R$ 15 reais qualquer pessoa pode doar e receber prêmios exclusivos em troca. Para ajudar a contar esta história e dar voz a estas mulheres acesse WWW.movere.me e clique em Africanas.