Por Renata Felinto
Fotos MANDELACREW
Quando se pensa em uma possível moda que possamos chamar de afro ou de afro-brasileira, provavelmente, vem a cabeça de muitas pessoas as vestimentas confeccionadas em tecidos multicoloridos, com estampas geometrizantes ou repleta de símbolos abstratos e feitas a partir de cortes amplos, largos. Bem extravagante como, de acordo com o senso comum, é o povo africano e, portanto, o afro-brasileiro. Talvez sim, possa ser isso. Porém, dois dados são muito pertinentes para se pensar sobre essa moda afro. O primeiro é que, em geral, estes tecidos são produzidos em países como Holanda e Bélgica e, inicialmente, foram idealizados para atender ao mercado indiano sendo, posteriormente, oferecidos aos africanos e indo ao encontro do gosto estético de algumas populações africanas. O outro é que estas roupas que povoam o imaginário de vestimenta afro-brasileira são africanas, da África, e nós não somos africanos por mais que haja um coro reforçando esta ideia.
Quando se pensa em Brasil não se deve perder de vista a questão da diáspora africana, ou seja, o espalhamento do povo africano pelo mundo, se amalgamando às outras populações, de africanos ou não, se “antropofagizando”, se urbanizando. Desta maneira, para se pensar em uma moda afro no Brasil, entre as suas várias possibilidades de interpretações, se devem considerar a população negra que vive nas cidades, nos grandes centros urbanos, na periferia ou não, que trabalha, estuda, sai para curtir a noite, se locomove de ônibus, carros, metrôs e trens e que observa na paisagem circundante pessoas em situação de rua, prédios, casas, fábricas, comércios, muros, favelas, abandonados ou não, e interferidos pela arte (ou não arte) feita em spray e cartazes.
Jaergenton de Souza Correa, ou somente Jaergenton, traz estas questões na sua mente e na maneira como se veste desde os seus 13 anos de idade, além de refletir sobre uma afrodescendência que se materialize em vestimenta. Hoje, ao observar a sua produção é nítido que tenha atingido este objetivo de chegar a uma vestimenta confortável, que dialoga com a matriz africana sem intencionar ou se remeter literalmente à África, que traz a referência da urbani(ci)dade por meio da paleta de cores (cinzas, preto e terrosos) e que pode ser usada sem maiores ressalvas em ambientes diversos, de uma festa ao local de trabalho, sendo esta uma das preocupações do estilista e artista plástico.
Nascido em São Paulo, família original do bairro de classe média Jardim Bonfiglioli, localizado na Zona Oeste, nos arredores do Butantã, o estilista é filho de costureira e sempre se interessou pelos tecidos. Diz que uma de suas brincadeiras era amarrar e criar formas a partir dos retalhos das costuras de sua mãe, ainda que ela não gostasse tanto que seus cinco filhos (ele é o único homem) circulassem pelo espaço de costura porque, afinal, as crianças poderiam sujar as roupas dos fregueses. Curiosamente nenhuma de suas quatro irmãs se interessou por este ofício.
Remontando o momento em que seu olhar despertou para a observação das roupas como algo que poderia ser original, surge o nome do rapper MC Hammer que estourou na transição dos anos de 1980 e de 1990 com hits como U Can't Touch This'. Quem não se recorda das suas calças que mostravam a cintura demarcada, o cavalo (parte da calça localizada na virilha) baixo e as pernas se afunilando a maneira de uma calça emprestada do Aladin? A partir dessa fase, Jaergenton, como muitos de nós, passou a se questionar em relação à falta de informações e referências sobre o papel da população africana e de seus descendentes na história de nosso país, especialmente no que se refere aos conteúdos ensinados nas escolas. Notou muito jovem esta invisibilidade agressiva que fere o fortalecimento e direito de autoconhecimento dos afrodescendentes em nosso país. Assim, além de se interessar pela pesquisa destes assuntos, é neste momento que ele passa a pensar nas roupas que veste (calça jeans e camiseta branca, de modo geral), e como elas são padronizadas e não representam parte de sua identidade. A primeira peça diferenciada que incorpora ao seu guarda-roupa é uma túnica (bata preta) feita por sua mãe e abandonada por uma freguesa.
Aproxima-se, então, da cena hip hop e “charm” da cidade freqüentando lugares antológicos cujos bailes eram promovidos por grupos como “Chic Show”. Nestes espaços, especialmente no Clube da Cidade, próximo à Estação Marechal Deodoro do metrô, importante espaço de festas “Black” ao se pensar na cena negra paulistana dos anos de 1990, se depara com negros e negras lindos, perfumados, reunidos em grupos e que também buscavam uma forma de valorizar uma estética afrodescendente, ainda que de maneira inconsciente e não militante. As maquiagens, as roupas, os cortes de cabelos, as músicas dançadas, mesmo com marcada referência afrodescendente norte-americana imprimiam a estes espaços e aos seus freqüentadores o sentimento de coletividade negra, fortalecida pela adesão estética a elementos comuns e com importante papel na forja de uma identidade negra, urbana e paulistana. São os “tempos bons que não voltam nunca mais” ao qual Thaide e DJ se referem na letra da música “Sr Tempo Bom”.
Já produzindo as suas próprias roupas Jaergenton passa a freqüentar estes bailes e a enfrentar os olhares de curiosidade, zombaria e de admiração dos transeuntes durante o percurso para chegar às festas. A determinação desenvolvida durante a época em que praticava atletismo foram e são fundamentais em sua trajetória e nas reações de enfrentamento às situações como estas. O que era esquisito ou feio para alguns foi visto como original e belo para os colegas e amigos de baile e de dança que passaram a pedir que ele cosesse vestimentas semelhantes para ele. Passou a receber encomendas feitas por pessoas da comunidade negra, porém, de segmentos muito distintos, não se restringindo assim, ao público que freqüentava os bailes Black.
Aprimorou em um curso promovido pelo SENAC durante um ano. Em vez de cursar Moda na Faculdade Santa Marcelina, que tem seu curso reconhecido como o melhor do país e de onde saíram nomes como Alexandre Herchcovitch e Fábia Bercsek, preferiu cursar Artes e ampliar o seu leque de referências e de conhecimento. Porém, num lugar com um monte de pessoas antenadas para a questão da moda, não só as roupas produzidas por ele e que usava em seu cotidiano chamaram a atenção, mas também a descoberta de que ele era já um estilista. Convidado a realizar uma apresentação de suas criações em um espaço que, normalmente, era utilizado para apresentação de trabalhos de conclusão de curso, já no segundo ano da graduação em Artes realiza um desfile em formato de sarau que se contrapôs ao padrão dos desfiles ocidentes com passarela em linha reta ou “T”, e ainda, trouxe poesia, música, reflexão e provocação acerca dos padrões de beleza vigentes e propagados, incluindo apontamentos voltados à questão da acessibilidade nas vestimentas, desfilaram: uma moça de formas arredondadas e dois homens, sendo homem com uma das pernas amputadas. Com este trabalho de extrema autenticidade, além dos vários elogios recebidos, também conquistou um bom emprego na própria faculdade no qual ficou até a finalização da graduação. A apresentação lhe rendeu um convite para apresentar a sua produção no Parque da Luz e várias agências de modelo ofereceram seus agenciados para desfilar as suas criações, desde a HDA (especializada em modelos negros) até a poderosa Elite.
A cidade e as suas características decorrentes de uma industrialização e crescimento exacerbados são um dos elementos que alimentam a criação de Jaergenton. Neste sentido, ele diz que pensar esta roupa que traduz parte deste espírito também é incorporar soluções de vestimentas de literais morados da cidade, da rua. O artista e arquiteto austríaco Hundertwasser (1928-2000), é uma de suas referências e concebeu o conceito das “Cinco Peles”, sendo a primeira a epiderme, a segunda o vestuário, a terceira a casa do homem, a quarta o meio social e a identidade e a quinta o meio global, a ecologia e a humanidade, propondo assim, um pensamento que não separa o homem de seu meio. Jaergenton pensa na vestimenta urbana também como segunda e terceira peles, especialmente no caso dos moradores de rua, na medida em que a roupa deles passa a ser “casa” também, protegendo do calor e do frio, mas também do mundo. Ao incorporar este conceito, Jaergenton também lança mão de tecidos encorpados, por vezes, aparentemente pesados para compor suas criações. E por falar em tecidos, ele raramente utiliza um tecido do jeito que ele foi comprado. Antes ele costumava pintá-los antes de costurar as roupas. Hoje ele interfere neles a partir de manchas, desgastes feitos com máquinas (como as usadas por odontologistas), dentre outros recursos para dar às suas roupas a idéia de abandono, deterioração e fuligem que permeiam o cotidiano de quem vive na cidade de São Paulo. E por falar em abandono, um dos temas que o estilista e artista plástico vem pesquisando recentemente são os lugares abandonados da metrópole, realizando uma espécie de arqueologia dos imóveis fantasmas que existem em quantidade considerável por aí.
Ele acredita que os conceitos que norteiam a sua produção já estão fechados, ou seja, se durante a adolescência pesquisava intensamente sem saber exatamente a que conclusão chegaria, agora sabe o que quer transmitir através de sua moda “afro-antropológica-urbana”. Pensa, inclusive, em dimensões educativas desta vestimenta com a qual o consumidor deve se identificar para usá-la e não fazê-lo simplesmente por que é desta ou daquela grife. Neste sentido, acredita que se um jovem da periferia se influenciar por suas criações e idealizar algo parecido com uma costureira de seu bairro, que isso não seria um plágio, mas sim uma conquista porque seria a propagação e reverberação de suas idéias, construídas ao longo de 20 anos. Hoje com 34 anos, recusando fazer parte do grande circo da moda brasileira que inclui eventos de dimensões gigantescas como a São Paulo Fashion Week, Jaergenton se prepara para divulgar suas produções via redes sociais e continuar as suas criações com uma agulha na afrodescendência, a tesoura na cidade e o tecido na originalidade.
Yinka Shonibare (1962)
O artista inglês criado na Nigéria, Shonibare explora questões de raça e de classe através de uma série de linguagens que inclui a moda. Ele usa tecidos feitos na Europa, porém conhecidos mundialmente como africanos por terem caído nas graças das populações locais, para coser indumentárias vitorianas. Explora assim as relações de identidade entre africanos e europeus na contemporaneidade via construção do gosto estético.
+ Para entender Jaergenton
Palavras-chave: cidade, conforto, basquete, hip hop, cultura “Black”, africanidade, ancestralidade, atletismo, corporeidade, movimento, identidade, liberdade, mãe, costura.
+ Para Ler
Hundertwasser: o pintor das cinco peles,
Pierre Restany
Editora Taschen
São Paulo, 2002
+ CONTATO
HAGADIMA E DESPIG - Ateliê Arte e Educação
Projetos Culturais & Vestimenta Afro Contemporânea
hagadimae@gmail.com