segunda-feira, 2 de maio de 2011

ENQUANTO HÁ VOZ, HÁ ESPERANÇA

Por Profeta da Luz.
Fotos: Michel Dessources Jr.
Magee Mcllvaine (vox afrika)


Vox Sambou e a arte como instrumento de formação e resgate da dignidade do povo haitiano


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Um eterno cenário de pós-guerra. Um inacabável e constante estado de desordem civil. Uma paisagem erodida, desarborizada e triste. Destroços de um país que há décadas busca ser, de fato, uma nação.
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O catastrófico tremor de sete graus de magnitude que atingiu o Haiti na noite do 12 de janeiro de 2010, deixando cerca de 220 mil mortos, mais de 300 mil feridos e 1,5 milhão de desabrigados, é verdade, aprofundou, e muito, fatores que há décadas impedem o progresso da ilha, como o perene estado de abandono por parte do poder público, a infindável dependência de ajuda externa e a cada vez maior incapacidade do país em liderar a sua própria reconstrução.
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Primeira república negra do mundo a abolir a escravidão (1794) e a declarar sua independência (1804), o Haiti, ao contrário do vanguardismo histórico, sofre há décadas com sucessivos, gananciosos e sangrentos governos ditatoriais.
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Como resultado deste plantio livre e desastroso, o que se vê pelas ruas do país são homens, mulheres e crianças reduzidos a pouco mais que farrapos humanos à caça de água e comida. Falta um governo forte, faltam hospitais, faltam escolas, falta infra-estrutura, falta tudo o que sempre faltou.
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Tal qual sua história, o enigmático povo haitiano, embora orgulhoso e patriota, não é de hoje abandona aos montes o país para começar uma nova vida em terras distantes. Entre estes se encontram artistas que, apesar de estarem longe de casa, ainda conservam sua inconfundível nacionalidade e o amor pelo país onde nasceram.
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O rapper e ativista social Robints Paulo, de 35 anos, conhecido como Vox Sambou, auto-intitulado "A voz eterna do Haiti", é um deles. Formado em antropologia e há 15 anos vivendo em Montreal, no Canadá, ele divide seu tempo entre a música (além da carreira solo integra também o grupo de rap Nomadic Massive) e o seu cargo de diretor da Casa de Jovens de Cote-des-Neiges. A música foi a ferramenta escolhida pelo rapper para jogar luz nas injustiças que acontecem no mundo e, particularmente, no país onde nasceu.
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Inspirado por ritmos como o dancehall, o rap e por músicos locais com consciência social como Eddie François e as bandas Boukman Eksperyans e Orquestra Tropicana do Haiti, Vox Sambou começou escrevendo músicas aos 14 anos na sua cidade natal, Limbé, localizada ao norte do Haiti. Mais tarde, estudando na capital Porto-Príncipe, começou a se apresentar em universidades e em festas estudantis.
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Ao cantar na língua mais falada no país, o creole, Vox não apenas legitima as letras engajadas e o ritmo dançante das suas músicas, como também externa o senso de orgulho do seu povo.
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Apesar do esforço do homem e das violentas manifestações da natureza, nem tudo está perdido no Haiti. Vox é a prova rítmica e dançante disso. Enquanto há voz, há esperança.
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Porque o nome Vox Sambou?
Quando estive em Cuba, em 2003, uns artistas e colegas cubanos me chamavam de o cara da voz. Quando voltei para Montreal decidi encontrar um sobrenome pra mim. Pensei em nomes como a voz que quebra barreiras, a voz que ultrapassa fronteiras. Foi então que resolvi tirar as letras S e T da expressão voix sans bout (que significa voz sem fim em francês) e ficou Vox Sambou. Fiz uma pesquisa para ver se o nome já havia sido utilizado por outro MC. Então descobri que este nome é original do oeste da África, especialmente de países como Senegal, Gâmbia e Mali. Aí escolhi o nome rapidamente. Disse para mim mesmo que, antes de mim, meus ancestrais Djoula talvez tivessem esse nome até serem capturados e enviados de navio ao Haiti.
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Porque resolveu deixar o Haiti? Não é contraditório, uma vez que você demonstra tanto amor por sua terra natal?
Depois do golpe de estado de 1991, durante o governo do presidente Jean-Bertrand Aristide, a juventude haitiana vivia se escondendo ou fugindo de barco para Miami. Muitos deles morriam enquanto tentavam deixar o país.
Dois de meus irmãos foram perseguidos pelo exército. Meu outro irmão mais velho, que era um padre católico e que fazia a sua graduação no Canadá, decidiu patrocinar a imigração da nossa família para lá. O processo durou quatro anos e eu cheguei a Winnipeg, em dezembro de 1995.
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O que mudou na sua observação do Haiti vendo o país de fora?
Muitos haitianos e haitianas, artistas e músicos, foram forçados a deixar o seu amado país sob pressões políticas e econômicas. A maior parte delas para garantir a sua própria sobrevivência. Morar fora do meu país me faz entender o quão importante e valiosa é a cultura haitiana. Nós temos uma das culturas mais ricas do mundo. O Haiti é onde a cultura africana é mais preservada no Caribe. Nossos valores e orgulhos são únicos.
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Porque você se intitula “a voz eterna do Haiti”?
Minha voz é a voz dos meus africanos e dos meus ancestrais Arawak e de milhares de jovens da minha cidade natal, Limbe. Nossa voz é de resistência, resiliência e assim permanecerá para sempre.
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Embora seja importante identificar os problemas do Haiti, é igualmente urgente encontrar soluções concretas para as dificuldades do país. Neste sentido, o que você vem fazendo?
Junto com outros artistas e ativistas em Montreal, fundei uma organização chamada Solid´Ayiti. Nós organizamos eventos para o levantar fundos que tem como objetivo ajudar uma escola pública na minha cidade natal. Nossa esperança é abrir um centro de juventude na cidade para reforçar a educação dos jovens em Limbe. Nosso próximo evento acontecerá no dia 19 de maio, na Sala Rosa, em Montreal. Também estamos trabalhando com a MSR (Missions de Solidarité Responsable) Internacional para trazer equipamentos de futebol e voluntários que possam ajudar a estabelecer um campo de futebol para os jovens de lá.
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O artista tem duas possibilidades quando ingressa no campo das artes. Utilizar sua produção como um instrumento transformador ou como entretenimento. Você claramente preferiu o ativismo. Por quê?
Eu faço música para expressar e denunciar as injustiças que os haitianos e descendentes de africanos estão enfrentando. Eu também expresso o amor que eu sinto em relação aos meus queridos e a diáspora africana. Minha música me dá grandes oportunidades para encontrar outros artistas ao redor do mundo com quem eu compartilho as mesmas visões da vida.
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Como é a luta para manter uma cultura própria (de raiz africana), uma vez que as rádios e TV´s disseminam a todo momento os costumes norte-americanos?
Como todos os países do mundo o Haiti é sufocado pela propaganda midiática norte-americana. Os haitianos, porém, continuam muito próximos das suas raízes. A juventude haitiana está presente e envolvida com a cultura Hip Hop. No entanto, eles a expressam na maior parte em sua língua mãe, o Creole. Eles apóiam e tem o maior respeito pela música tradicional do país e também são influenciados por grupos conscientes, como Boukman Eksperyans, Kouple Kloue e Tropicana D’Haiti.
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Você comentou recentemente que no Haiti o povo é impedido de saber a sua verdadeira história. No Brasil temos um problema parecido. A quem interessa essa negação da própria história?
A nossa história é muito importante de ser conhecida para que o indivíduo se entenda e se conheça para seguir em frente. É do interesse da minoria rica e dos governos manter a maioria no escuro para manipular, tirar seus próprios lucros e proteger o seu poder.

Devido à falta de recursos nós sofremos por sermos incapazes de nos educarmos. Eu acredito que se a maioria da nossa população fosse educada todos teríamos uma vida melhor, uma auto-estima melhor, compreensão e amor uns pelos outros. Por exemplo, quando eu estava na escola primária e no ensino médio, me ensinavam que a história do Haiti começava com a escravidão, o que é completamente falso. A história haitiana começou no oeste da África, milhares de anos antes da era colonial. E continua quando os primeiros homens do oeste africano se encontraram com os Arawaks ao chegarem à terra chamada Haiti.

Os Arawaks são também ancestrais dos haitianos e foram capazes de colaborar com os africanos antes deles serem assassinados e exterminados pelo exército de Cristovão Colombo.
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Qual a importância do rap para o auto-reconhecimento do jovem haitiano como sujeito?
No Haiti nós temos o que chamamos de movimento de rap Kreyol ou rap haitiano. Há centenas de grupos no país, a juventude haitiana usa isso para compartilhar suas opiniões entre eles e a sociedade. Um show de rap no Haiti é uma expressão rica em si mesma. Pude vivenciar isso quando fui convidado pelo Haitian NGO Aprosifa no último mês de outubro, em Carrefour Fevilles, um bairro marginalizado de Porto Príncipe, para conduzir workshops de hip hop com 45 jovens. A experiência foi tão rica e poderosa que Nomadic Wax e eu decidimos, em colaboração com o ProVision Haiti, filmar um documentário chamado Democracia no Haiti. Essa produção compartilha as perspectivas dos jovens nas eleições presidenciais recentes do país. O pedido mais importante destes jovens é de serem ouvidos, e eles gostariam de fazer isso com sua própria voz e não com a de outras pessoas.
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O governo Papa Doc contribui de forma relevante para o empobrecimento cultural do Haiti ao expulsar boa parte dos intelectuais e pessoas com idéias progressistas?
As raízes da cultura Haitiana são umas das mais ricas. Os intelectuais e artistas haitianos tinham sido reprimidos no passado, no entanto não há um indivíduo que possa empobrecer a cultura haitiana. Eu convidaria todos para visitar o país e conhecer os homens e mulheres haitianos em locais como Leogane, Jacmel, Port-Salut, Aux Cayes, St-Marc, Limbe, Bois Caiman, Milot, Pignon, apenas para nomear algumas cidades que testemunharam a nossa grande e crescente cultura.
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O Vodu (assim como segmentos religiosos como o candomblé e a umbanda, no Brasil) sofre preconceitos da sociedade, uma vez que a liberdade para a prática dessa modalidade religiosa é cerceada por muitos. O que fazer para que a riqueza cultural do país não desapareça?
Nós precisamos continuar a apoiar nossas raízes culturais criando plataformas maiores e sustentáveis para encorajar mais grupo locais, artistas e músicos. Precisamos continuar educando a população em geral e ter mais discussões abertas sobre nossas raízes e herança para erradicar os nossos preconceitos e aprendermos a nos amar e a amar nossa cultura.
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Porque a escolha em cantar em Criole?
Minha música é em sua maior parte em Criole porque eu sou Criole, que é a língua que representa a identidade de todos os haitianos.
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Como é para vocês estar no Haiti, ligar o rádio e escutar músicos americanos?
O Haiti é um país cheio de diversidade, os haitianos amam a música e a arte em geral, no entanto, estão sendo submergidos pela propaganda midiática norte-americana. É muito difícil manter nosso orgulho artístico e cultural. Nós como haitianos precisamos criar uma mídia alternativa haitiana que encoraje e apóie mais a música e a cultura tradicional haitianas.


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ACESSE
myspace.com/voxsambou
democracyinhaiti.com
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DISCOGRAFIA
Álbum: Lakay
Gravadora: Public Transit Recordings
Ano: 2008
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LEIA
Haiti: Cultura, poder e desenvolvimento
Coleção Tudo é História
Marcelo Grondin
Editora Brasiliense
1985
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CLICK
Luis Alcalá del Olmo
O fotógrafo espanhol Luis Alcalá del Olmo passou quatro anos no Haiti

em busca de respostas para o fascínio do Vodu.
www.alcaladelolmo.com



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Djoula
A sociedade Djoula (também conhecido como Jula ou Dyula) nasceu no Império do Mali Mande, há mais de 600 anos. Seu nome significa "comerciante ambulante.
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Arawaks
São considerados Arawaks alguns dos povos indígenas das índias Ocidentais. Cristovão Colombo os encontrou quando desembarcou pela primeira vez na América, em 1492. Na época da conquista espanhola (século XVI) ocuparam as ilhas das Grandes Antilhas, Bahamas, Trinidad e outras áreas da Amazônia.
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Nomadic Wax
Nomadic Wax é uma organização internacional que promove o livre comércio de músicas, filmes e eventos com um enfoque social e global. Especializado em hip-hop e música underground, a organização trabalha com uma rede de artistas e músicos em todo o mundo que utiliza a arte como um meio para o ativismo, a mudança social e desenvolvimento comunitário.
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ProVision
Coletivo de jovens cineastas haitianos influenciado pela cultura hip hop
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Solid'Ayiti
Solid'Ayiti é uma iniciativa de artistas e ativistas sociais de Montreal, que trabalham para promover a auto-suficiência, a independência, a justiça social e a paz no Haiti.




* Agradecimentos especiais: Liliane Braga e Camila Zanini