segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

DIÁLOGOS E IDENTIDADES

Por Renata Felinto
Fotos Arquivo


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A representação do negro nas artes plásticas brasileiras
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Bananal - Lasar Segall (1927), óleo sobre tela
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A partir da Lei 10.639/03, que obriga o ensino sistemático da História das Culturas Africanas e Afro-Brasileira em sala de aula, as Artes Plásticas, passam a ser uma das protagonistas na transmissão da cultura afrodescendente às gerações em formação. Também chamada Educação Artística, as Artes Plásticas devem introduzir a produção artística, até então chamada de “afro-brasileira”, como construtora de “fazeres” e “saberes”. Se antes, o foco no ensino de Artes era a produção modernista, agora o trabalho do professor de Educação Artística deve, obrigatoriamente, extrapolar esta escolha e limitação, passando a investigar, presentificar e apresentar a produção artística desenvolvida por negros. Nela, a marca do negro está ora tendo o negro como representador, ora como representado.
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Há artistas negros primorosos que, em poucas obras, ou em nenhuma delas, teve o negro como seu tema. Os motivos dessas não representações de seus iguais são diversos e vão desde o desejo dos próprios artistas em não representar essa temática, em detrimento de outras, até as adversidades dos meios nos quais esses artistas viviam. Assim, serão esboçados neste texto como o negro aparece representado na produção artística brasileira, com foco nos motivos e contextos destas representações bem como na denominação de cor e de origem destes artistas.
Para organizar a observação da produção em questão, dividiremos a representação do negro em três momentos distintos: documental, social e pessoal. Documental seria toda a produção realizada durante os séculos XVII, XVIII e XIX; social a produção que abarca a primeira metade do século XX; enquanto pessoal a produção do fim do século XX até o momento atual.
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Arthur Timotheo da Costa – Retrato de menino, s.d., óleo sobre tela
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O momento documental é caracterizado por ser uma produção que abrange mais detidamente o Brasil e suas peculiaridades como objeto de estudo. A geografia, fauna, flora, população, modos e costumes brasileiros são os temas centrais. Parte significativa dessa produção foi realizada por artistas estrangeiros ou viajantes, que chegaram ao Brasil, geralmente, como contratados com o objetivo de realizar trabalhos de caráter documental e que envolviam aspectos específicos da realidade da nova terra que suscitavam grande curiosidade e interesse por parte dos estrangeiros.
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Em 1637, chegam a Pernambuco os artistas holandeses Frans Post (1612-1680) e Albert Eckhout (1610-1666), contratados do Príncipe Maurício de Nassau. Post deveria documentar os edifícios, portos, fortificações e a exuberante paisagem brasileira, enquanto a Eckhout cabia pintar a fauna, a flora e os curiosos tipos humanos. Post representou o negro como coadjuvante, ele não é o tema central, mas sim um elemento da composição de suas pinturas, assim como as árvores ou os animais. Já Eckhout pintou um conjunto de oito pinturas que retratam tipos humanos encontrados no Brasil, sendo duas delas representações de negros: Homem Negro e Mulher Negra (1641). Representou esses negros como habitantes da África Central e não escravizados no Brasil, detalhe que confere às pinturas tom alegórico.
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Albert Eckhout - Mulher africana, 1637, óleo sobre tela
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No século XVIII, Carlos Julião (1740-1811), oficial militar italiano a serviço da Coroa Portuguesa, registrou em suas aquarelas as regiões da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, antecipando o tipo de representação comum no século XIX que focava o cotidiano das cidades e vilas. Julião nos legou a mais completa obra sobre costumes brasileiros do século XVIII de que se tem conhecimento até os nossos dias, incluindo o negro como sujeito de suas festas e não como cativo.
No período barroco, final do século, século XVIII e parte do século XIX, o filho de portugueses Manoel da Costa Athayde (1762-1830) eternizou a mulher negra já miscigenada no teto da Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto (MG), no qual está representada a Nossa Senhora da Porciúncula.
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Em 1816, chegaram ao Brasil os artistas da Missão Artística Francesa, que sedimentam por aqui os paradigmas estéticos europeus que tornaram-se as bases da produção brasileira daí por diante. Dentre eles, nos interessa Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que como aquarelista registrou o cotidiano da capital do recém Império, Rio de Janeiro. Nas suas aquarelas a figura do negro assume importância ímpar e registram situações de trabalho escravo abrangendo também as relações cotidianas entre senhores e cativos. Outro importante artista-viajante foi o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que chegou ao Brasil em 1822, contratado pela Expedição Langsdorff. Em suas aquarelas e litografias o negro também surge em uma espécie de crônica da cidade do Rio de Janeiro, de forma distanciada em situações de trabalho, castigo e até mesmo no interior de um navio negreiro que se supõem não ser verdadeiro dada às posturas dos retratados.
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É no final do século XIX, entretanto, que aparecem os primeiros artistas negros que abrem caminho para outros negros que são artistas e que representam a si e à sua cultura. Um deles foi o carioca Artur Timotheo da Costa (1882-1922). Formado pela Academia Imperial de Belas Artes, diferentemente de seus contemporâneos negros, conseguiu equilibrar o gosto acadêmico pela pintura paisagística e o interesse pelos estudos da figura humana, variando seus modelos entre mulheres brancas e homens e meninos negros. Nas suas pinturas o rosto negro é o belo a ser estudado em suas linhas, formas e cores, transmitindo suavidade e delicadeza por meio de sua pincelada, como por exemplo, no trabalho Retrato de menino.
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Ainda no final do século XIX, o negro também foi largamente registrado através da linguagem fotográfica que gozava de grande prestígio na época. Entre estes fotógrafos podem ser mencionados o português Christiano Junior (1832-1902), que montou cenas em seu estúdio fotográfico nas quais os negros representavam escravos de ganho; e o carioca Militão Augusto de Azevedo (1840-1905), que realizou fotografias de famílias negras em São Paulo trajadas à moda da época para assistir às missas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, freqüentada pela população negra.
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No final do século XIX e início do XX, as representações de negros nas Artes Plásticas caracterizam o momento classificado como social, pois no período modernista à figura do negro se atribuiu traços de brasilidade. Neste momento, há duas vertentes de representação mais visíveis: o negro atrelado ao passado escravista ou como sujeito, que nos é mais interessante.
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Zezé Botelho Egas e o carioca Pedro Bruno (1888-1949) representam o negro torturado ou exercendo trabalho escravo. A primeira, na escultura em bronze Gargalheira (1936), traz um homem castigado com a penitência aplicada aos fujões recapturados, enquanto, Bruno reproduz a ama de leite em sua tela Mãe Preta (1940). Resta refletir sobre os motivos que impulsionaram esse tipo de representação décadas após a abolição da escravidão em um momento de exaltação da figura do negro.
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O italiano Alfredo Volpi (1896-1988), o paulistano Candido Portinari (1903-1962) e o lituânio Lasar Segall (1891-1957), três dos maiores artistas modernistas pintaram o negro em situações diversas que exultaram sua história, sua cultura, sua beleza, sua situação social e sua individualidade. Segall, para esmiuçar a produção de apenas um deles, pintou telas das mais sensíveis sobre a agonia social e psicológica sofrida pelo negro no Brasil em telas como Bananal (1927). Essas representações com forte apelo social demonstram a preocupação dos artistas do período em adicionar traços de brasilidade às suas obras, além de incorporar inovações estéticas das vanguardas européias.
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Após a guinada inicial modernista, muitos artistas negros sem formação acadêmica, emergem na cena artística nacional e internacional tomando para si a empreitada de representar suas heranças culturais e seu modo de viver, transpondo as barreiras impostas pela academia por meio de sua originalidade, vivacidade e criatividade. As obras dos cariocas Heitor dos Prazeres (1898-1966) e de Sérgio Vidal (1945) e do baiano Agnaldo Manuel dos Santos (1926-1962) nas Artes Plásticas um tipo de espelho que reflete sensações, emoções e sentimentos interiores, ancestrais, sociais. No caso de Vidal, por exemplo, representou negros dotados de grande integridade humana se considerados aspectos como família, trabalho, lazer, afeto, sonho. Com um ideal de vida distante da realidade de grande parcela da população negra, mas que despertam esperanças e acalentam o cotidiano massacrante.
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A partir de 1990 submergem de ateliês periféricos as representações apontadas como de caráter pessoal. Interessante notar que através de “microbiografias” familiares presentes nesse tipo de representação do negro é possível antever histórias de muitas famílias negras, conferindo a essas produções uma qualidade “macrobiográfica”: são os caminhos dos negros, que ou eles os escolheram, ou que, por força das circunstâncias foram levados a eles. Portanto, a representação pessoal apresenta sensíveis pontos de vista e de percepção sobre a diáspora africana e suas continuações como é possível observar nos trabalhos do mineiro Eustáquio Neves (1955) e da paulistana Rosana Paulino (1967).
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Na obra de Neves o negro é protagonista das histórias que conta, como no caso da série Arturos, de 1995, que recebe esse título por narrar em imagens a história da família de mesmo nome que vive em Minas Gerais e que expressa na festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, parte de sua religiosidade sincretizada. Já Paulino pesquisou nos arquivos fotográficos de sua família as referências para a criação de muitos trabalhos.
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Portanto, a representação do negro nas Artes Plásticas do Brasil, sofre importantes transformações ao longo dos séculos. São muitas formas de pintar, desenhar, esculpir e fotografar o negro para os professores de Educação Artística apresentarem aos seus alunos, com especial atenção aos conceitos e contextos contidos nessas representações. Se nas primeiras imagens o negro era representado alegoricamente visto por olhos estrangeiros, agora são os próprios negros que dão o tom dessa representação, assumindo seus próprios discursos, sendo, simultaneamente, criadores e criação de suas histórias pessoais e de seus antepassados.
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Referências Bibliográficas
- ABDALLA, Antonio Carlos. IN: Heitor dos Prazeres: um pierrô apaixonado na BM&F. (catálogo de exposição). São Paulo: Espaço Cultural BM&F Brasil, 03 de fev a 18 de mar de 2005.
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- BELLUZO. Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes: imaginário de novo mundo. São Paulo: Metalivros, 1994, v.1.
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- DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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- LEITE. José Teixeira Leite. Pintores negros do oitocentos. São Paulo: MWM-IFK, 1988.
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- MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. A travessia da kalunga grande: três séculos de imagens sobre o negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.
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Referências Eletrônicas
LEITE. Marcelo Eduardo. Militão augusto de Azevedo: um olhar particular sobre a sociedade paulistana (1862-1887).
http://www.studium.iar.unicamp.br. Acesso em : 20 de mar 2006.
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______. Os múltiplos olhares de Christiano Junior.
http://www.studium.iar.unicamp.br. Acesso em: 20 de mar 2006.
Missão Artística Francesa.
http://www.itaucultural.org.br. Acesso em: 20 de mar 2006.