Apesar da produção literária e intelectual no Brasil, especialmente a lançada entre a segunda metade do século XIX e início do século XX, ser extremamente rica, com destaque para nomes como Machado de Assis, Rui Barbosa, Monteiro Lobato, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa, (só para citar alguns) nunca tive muito interesse pela obra, e tão pouco pela vida desses escritores.
Contaminado pela rigidez dos livros (e também das aulas) de História das cadeiras escolares, confesso que, com exceção do período pré-vestibular, foram poucas as vezes que mergulhei meus olhos sob a histórica produção desses baluartes da literatura nacional.
Talvez seja por isso que só agora, há poucos meses, com meu ingresso em um curso de Jornalismo Cultural, tenha conhecido a obra do poeta Antônio Frederico de Castro Alves, o Castro Alves.
Alves foi um dos primeiros abolicionistas do país e, numa época em que se considerava desperdício de tempo ocupar-se com a sorte dos negros, suas poesias mais conhecidas são marcadas pelo combate à escravidão, motivo pelo qual ficou conhecido como "Poeta dos Escravos".
Apesar de ter vivido pouco (nasceu em 1847 e morreu em 1871) este notável poeta deixou livros e poemas significativos.
A baixo segue a poesia Vozes d’África, parte integrante da obra Os Escravos, uma coleção de poesias publicadas 12 anos antes morte do poeta e cujo tema centra-se na liberdade dos escravos.
Vale a pena ler, mesmo porque, guardada as devidas proporções, pouca coisa mudou de lá pra cá.
Vozes d’África
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
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Qual Prometeu tu me amarraste um diaDo deserto na rubra penedia— Infinito: galé! ...Por abutre — me deste o sol candente,E a terra de Suez — foi a correnteQue me ligaste ao pé...
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O cavalo estafado do BeduínoSob a vergasta tomba ressupinoE morre no areal.Minha garupa sangra, a dor poreja,Quando o chicote do simoun dardejaO teu braço eternal.
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Minhas irmãs são belas, são ditosas...Dorme a Ásia nas sombras voluptuosasDos haréns do Sultão.Ou no dorso dos brancos elefantesEmbala-se coberta de brilhantesNas plagas do Hindustão.
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Por tenda tem os cimos do Himalaia...Ganges amoroso beija a praiaCoberta de corais ...A brisa de Misora o céu inflama;E ela dorme nos templos do Deus Brama,— Pagodes colossais...
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A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...A mulher deslumbrante e caprichosa,Rainha e cortesã.Artista — corta o mármor de Carrara;Poetisa — tange os hinos de Ferrara,No glorioso afã! ...
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Sempre a láurea lhe cabe no litígio...Ora uma c'roa, ora o barrete frígioEnflora-lhe a cerviz.Universo após ela — doudo amanteSegue cativo o passo deliranteDa grande meretriz.
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Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonadaEm meio das areias esgarrada,Perdida marcho em vão!Se choro... bebe o pranto a areia ardente;talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!Não descubras no chão...
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E nem tenho uma sombra de floresta...Para cobrir-me nem um templo restaNo solo abrasador...Quando subo às Pirâmides do EgitoEmbalde aos quatro céus chorando grito:"Abriga-me, Senhor!..."
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Como o profeta em cinza a fronte envolve,Velo a cabeça no areal que volveO siroco feroz...Quando eu passo no Saara amortalhada...Ai! dizem: "Lá vai África embuçadaNo seu branco albornoz. . . “
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Nem vêem que o deserto é meu sudário,Que o silêncio campeia solitárioPor sobre o peito meu.Lá no solo onde o cardo apenas medraBoceja a Esfinge colossal de pedraFitando o morno céu.
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De Tebas nas colunas derrocadasAs cegonhas espiam debruçadasO horizonte sem fim ...Onde branqueia a caravana errante,E o camelo monótono, arquejanteQue desce de Efraim
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Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!É, pois, teu peito eterno, inexaurívelDe vingança e rancor?...E que é que fiz, Senhor? que torvo crimeEu cometi jamais que assim me oprimeTeu gládio vingador?!
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Foi depois do dilúvio... um viadante,Negro, sombrio, pálido, arquejante,Descia do Arará...E eu disse ao peregrino fulminado:"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...— Serei tua Eloá. . . "
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Desde este dia o vento da desgraçaPor meus cabelos ululando passaO anátema cruel.As tribos erram do areal nas vagas,E o nômade faminto corta as plagasNo rápido corcel.
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Vi a ciência desertar do Egito...Vi meu povo seguir — Judeu maldito —Trilho de perdição.Depois vi minha prole desgraçadaPelas garras d'Europa — arrebatada —Amestrado falcão! ...
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Cristo! embalde morreste sobre um monteTeu sangue não lavou de minha fronteA mancha original.Ainda hoje são, por fado adverso,Meus filhos — alimária do universo,Eu — pasto universal...
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Hoje em meu sangue a América se nutreCondor que transformara-se em abutre,Ave da escravidão,Ela juntou-se às mais... irmã traidoraQual de José os vis irmãos outroraVenderam seu irmão.
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Basta, Senhor! De teu potente braçoRole através dos astros e do espaçoPerdão p'ra os crimes meus!Há dois mil anos eu soluço um grito...escuta o brado meu lá no infinito,Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...
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São Paulo, 11 de junho de 1868
São Paulo, 11 de junho de 1868
Fonte: www.dominiopublico.gov.br
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