sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O fim como recomeço

Ensaio fruto da análise do livro “O Fim da História da Arte”, de Hans Belting, e do movimento da pixação na cidade de São Paulo nas décadas de 80 e 90.
“O discurso à cerca do fim (da história da arte e da arte em si) não pode ser confundido com uma inclinação apocalíptica, a menos que a palavra seja entendida no velho sentido de ‘descobrimento’ ou de ‘desvendamento’ daquilo que em nossa cultura se distingue como mudança”. Talvez seja essa uma das mais importantes, e esclarecedoras, citações do historiador de arte alemão Hans Belting, no livro “O Fim da História da Arte”, publicado no Brasil pela editora Cosac Naify.

Importante pelo fato de pontuar o fim, ou melhor, a transformação de uma significativa tradição cultural enraizada no âmago da civilização ocidental. Esclarecedora por tranqüilizar os mais desacostumados com a expressão que, aparentemente decreta o encerramento da história da arte.

Começo este ensaio que procura traçar um paralelo entre o fim da história da arte e o movimento da pixação (especialmente o desenvolvido na cidade de São Paulo nas últimas duas décadas) com a citação de Belting pois é fundamental compreendermos que, no contexto que se seguirá, assim como no livro a cima citado, o fim nada mais é do que uma transformação, ou melhor, uma evolução (natural), tanto da história como das artes. Ou seja, não significa que a arte e a ciência da arte tenham alcançado o seu fim, mas registra o fato de que na arte, assim como no pensamento da história da arte, delineia-se o fim de uma tradição que desde a modernidade se tornara o cânone na forma que nos foi confiada.

Este rompimento, primeiramente citado pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e depois pelo crítico de arte norte-maericano Arthur C. Danto, abre espaço para que os artistas de uma forma geral se libertem das garras cerceadoras da arte tradicional, reagindo com criatividade a esta nova era e ampliando as possibilidades do seu talento. Da mesma forma que o público também fica mais à vontade para ampliar suas sensibilidades artísticas e experimentar novas sensações diante de uma obra, por mais que a aura da mesma (conforme conceito estabelecido por Walter Benjamin) tenha sido corrompida.

Aliás, foi o próprio Benjamin quem em seus estudos afirmou que, com as novas possibilidades de reprodução técnica desenvolvidas entre os séculos XIX e XX, a obra de arte perdeu a sua “autenticidade” e “autoridade”, que lhe eram conferidas através de sua duração no tempo, e com isso deixou de ser privilégio de apenas alguns para atingir a grande massa.

Juntando os ensaios dispostos no livro “O Fim da História da Arte”, onde Belting defende que história da arte, tal como era contada, não passava de um “equívoco ocidental”, que trata o desenvolvimento de algumas correntes da produção visual de uma determinada cultura como uma narrativa única e universal, e os discursos de Benjamin no livro “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, podemos observar que o fim também pode ser o começo. Para o bem ou para o mal. Especificamente no caso das artes este rompimento vem se mostrando positivo quando encarado como uma evolução que seria impossível de ser reprimida.

Uma das primeiras providências visíveis tomadas pelos artistas a partir deste novo cenário, oficialmente constituído a partir dos ready-mades de Marcel Duchamp, foi abandonar as limitações geográficas da imagem fechada, do enquadramento da obra de arte. É, conforme pontuou Belting, “como se ao ‘desenquadramento’ da arte se seguisse uma nova era de abertura, de indeterminação, e também de uma incerteza que se transfere da história da arte para a arte mesma”.

A liberdade criativa desta nova era, porém, em alguns casos, manifesta-se como combustível para comprovação da eficácia de uma antiga estética, outrora renegada, mas comprovadamente bem sucedida. Foi o que vimos, por exemplo, com o surgimento do movimento dos pixadores, iniciado no calor das grandes revoluções estudantis e trabalhistas dos anos 60 e 70, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, e que anos mais tarde venho desembarcar no Brasil.


Herdeiros da contracultura, do movimento dadaísta, da cultura beatnik, das caligrafias rupestres e da própria pop art, eles formam uma nova e desordenada vanguarda, e porque não um novo movimento cultural que, apesar do caráter contestador e anarquista das suas manifestações, segue utilizando os “enquadramentos” da paisagem urbana como plataforma para divulgação das suas idéias.

Na cidade de São Paulo, onde o movimento promoveu seus primeiros traços em meados dos anos 80, ele está presente em larga escala, seja como tema de discussão em rodinhas de jovens rebeldes (em sua maioria com baixa condição econômica), ou ocupando paredes, janelas, muros, viadutos e tudo que possa ser “escalável” ou “pintável”.

Apesar de não ser formado em sua totalidade por artistas propriamente ditos, já que divide seu “establishment” com pseudo ativistas culturais, baderneiros de segunda linha e auto-denominados vândalos urbanos, o movimento, que nasceu com o intuito de contestar, impactar e se desvincular da história da arte e da obra de arte em si, tornou-se cúmplice dela. Uma vez que utiliza a rua (habitat natural da manifestação), tomada por informações, intervenções arquitetônicas e visualmente carregada, ao menos nos grandes centros, por uma paisagem sufocante e cinzenta, como um museu contemporâneo a céu aberto.

Visto que os museus assumiram um novo papel na era moderna, satisfazendo os desejos de criação dos seus organizadores e os desejos de entretenimento do público, conforme demonstrou em 1990 o Museu de Arte Moderna de Nova York, ao inaugurar a exposição High and Low, apresentando uma nova fisionomia que renunciava ao ideal de templo majestoso da modernidade clássica, a rua e o museu, hoje já não se diferem integralmente como outrora. “O museu como templo arte, em vez de escola, sempre foi um conceito da era burguesa”, afirmou Arthur C. Danto na oportunidade da mostra.

Foi justamente isso o que aconteceu com a rua (antes território de passagem e, porque não, contemplação paisagística) com a invasão da arte urbana nos grandes centros.

A democratização dos museus, instituição que na contemporaneidade passou a ser dirigida a um público novo, e essa mistura de cultura e mercado, reflete claramente na disposição das manifestações artísticas urbanas, e vice-versa. A rua é o espaço perfeito para arte contemporânea, e a pixação soube se apropriar com sabedoria deste universo, apresentando gratuitamente as transformações de uma história da arte que hoje (quer dizer, desde o início do século XX) possui novos contornos.

Da mesma maneira que o Museu teve alterado sua função, a rua também. Cientificamente, trata-se da evolução natural dos tempos, das pessoas e seus pensamentos. Apesar de gozar de um eterno anti-prestígio, a pixação carrega enraizada consigo uma célebre afirmação de Duchamp, que certa vez disse: “será arte tudo o que eu disser que é arte", dando a entender que nos foi legado pelo passado só é considerado arte porque alguém assim o disse e nós nos habituamos a admiti-lo.

A frase, quase que uma profecia, realmente se materializou e, hoje tudo é arte. E se tudo é arte, logo nada é arte.

Mas nem por isso ela, esta nova arte, deixa de provocar. Ao contrário do que afirma Belting, quando diz que: “a libertação em relação aos tabus pela qual a modernidade lutou outrora perdeu seu valor desde que a arte não provoca mais ninguém”.

A pixação, objeto deste ensaio, provoca sim. Especialmente a paulistana, dona de um estilo próprio (esteticamente diferenciada das demais pixações ao redor do mundo), próximo a escrita normal e avantajada verticalmente. Mas não são por essas características que ela provoca quem as observa, e sim pelo contexto envolvido na sua produção e disseminação, além é claro do impacto visual. O desapego do pixador para com a sua obra torna a efemeridade um elemento primordial do movimento, sujeito a a ação do tempo e de um bom balde de tinta que recria uma nova plataforma a ser utilizada.



Os locais onde as pixações são feitas, no topo de edifícios, em becos e vielas quase que invisíveis a olho nu (muito próximo ao que faziam os Xamãs quando desenhavam símbolos em grutas praticamente inaccessíveis) provocam as mais inusitadas reações.

É a arte se apropriando dos espaços, seja ele um vagão de trem ou o topo de um prédio. Ou seja, assim como disse Belting, os pixadores, como a grande parte dos artistas contemporâneos, especialmente os envolvidos com novas tecnologias e performances, não se movem mais por um caminho retilíneo do desenvolvimento histórico, mas, sim, simultaneamente dirigem o olhar para uma ciência da arte que não reconhece mais um modelo obrigatório para a apresentação do seu objeto.

A aura da pixação está nas ruas e por mais que aja semelhança nas caligrafias espalhadas pela cidade de São Paulo a manifestação se autentica pela forma e locais onde é produzida, esquivando-se assim do veredito da imitação. Por essa razão seus protagonistas, da mesma maneira que os demais artistas contemporâneos (especialmente os performáticos e os que utilizam tecnologias como vídeo e fotografia) podem atrever-se a temas do homem e da sociedade para os quais a arte profissional de galeria do Ocidente não possui mais nenhuma expressão.

A conclusão que chegamos é que o fim da história da arte, bem como da arte, propagada por Belting, libertou o artista e o público. Hoje já não é mais preciso quebrar o espelho contido na história da arte, já que não se possui mais a cultura para todas as épocas. A pixação reflete bem este rompimento de paradigmas, por ser livre, democrática, autêntica, contestadora e esteticamente agressiva. O belo, o bom e o verdadeiro já não são fundamentais. O monopólio de um pensamento ocidental protecionista com sua arrogância de precursor ultrapassado já não convence mais.

Os olhos do mundo miram para uma nova história da arte, iniciada por Duchamp e os dadaístas do início do século XX, e que refletida na velocidade do mundo moderno não tem o menor interesse em ser compreendida, apenas disseminada e consumida. Bem vindo ao capitalismo selvagem.


Bibliografia consultada
- Hans BELTING, O Fim da História da Arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
- Arthur C. DANTO, Após o fim da Arte. São Paulo: Edusp, 2006.
- Ricardo FABBRINI, A arte depois das vanguardas. Campinas: editora da Unicamp, 2002.
- Paulo Sérgio do CARMO, Culturas da Rebeldia – A juventude em questão. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2003.