domingo, 30 de maio de 2010

O Bando é da Carelli!

por Nayara de Deus para OMENELICK2ºATO



Chica Carelli é hoje a dama de ferro por de trás das coxias do Teatro Negro Brasileiro.
O rótulo, apesar de confrontar a doce figura da atriz e diretora teatral, sintetiza bem a importância da mulher que - desde o surgimento do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, e do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal - ousou oferecer ao país uma dramaturgia voltada ao diálogo para as minorias e a valorização de grupos étnicos notadamente marginalizados pela sociedade, neste caso, os negros.

Fundadora do Bando de Teatro Olodum (grupo de teatro baiano formado essencialmente por atores negros) ao lado de Márcio Meirelles, Chica costuma dizer que o Bando é uma companhia necessária porque seu discurso “que incomoda” precisa ser ouvido.

Há 20 anos em cena, o Bando (responsável pela formação de artistas como o baiano Lázaro Ramos) já promoveu cerca de 20 espetáculos teatrais, com destaque para “Cabaré da RRRRRaça” (1997), mais encenada montagem do grupo, “Sonho de Uma Noite de Verão” (2006), vencedor do prêmio Braskem; e “Ó Paí, Ó”, que ganhou expressão nacional ao se tornar longa-metragem, em 2007.

Com cores vibrantes, dança e questionamentos sobre o papel do negro na sociedade contemporânea, o grupo já encantou platéias da Alemanha, Portugal, Angola e Inglaterra, e prepara para o segundo semestre deste ano a estréia do espetáculo “A coisa tá Preta”.

Em abril, o Menelick acompanhou de perto a temporada de apresentações do Bando por Sampa, e entre um espetáculo e outro, conseguimos um dedinho de prosa com Chica Carelli. Confira!

O Menelick 2ª Ato - Chica, você com essa pigmentação que, não é a da maioria baiana, (rs), porque resolveu se juntar a um propósito que viesse de encontro aos anseios da população negra?
Chica Carelli -
(rs)...Olha...foi uma coisa que foi acontecendo. Eu nasci na França, fui criada em São Paulo, e aos 16 anos voltei pra França. Porém, decidi que era aqui que eu queria ficar. Mas, também não queria mais São Paulo. Então fui pra Bahia, porque na época, o tipo de teatro que eu queria só tinha na faculdade federal da Bahia. Eu fiquei porque estava buscando uma cultura diferente e consegui encontrar lá; na Bahia. Fui fazer dança afro, capoeira...cantei numa banda de percussão..., simplesmente, porque eu gostava!


OM2ªATO - Como nasceu o Bando?
CC -
Surgiu da vontade de criar um teatro mais brasileiro, mais baiano. Começamos (ela e o diretor Márcio Meirelles) com um espetáculo sobre Gregório de Matos, primeira encenação que tinha essa coisa da cultura negra. Essa experiência chamou a atenção do pessoal do Olodum, e eles chamaram a gente pra criar essa Companhia de teatro, dentro do Olodum.
No começo éramos 30 atores e sete meninos da banda mirim do Olodum. Começou de uma audição que abrimos, alguns foram atraídos pelo nome do Olodum, outros, pelo nome do Márcio. O pré-requisito para estar no Bando era: se jogar! Não era nem a qualidade porque, a gente fala: o mais importante em um ator é o desejo de fazer aquilo, porque o talento a gente desenvolve. E nunca foi pré-requisito do bando ser negro. Muitos brancos passaram pelo Bando mas, eles sempre saíram...nunca permaneceram (rs).
No início trabalhamos calcados na commedia dell'arte, na criação de personagens que improvisavam e criavam situações... “Ó Paí ,Ó” foi criado assim, e acho que por isso fomos criando uma dramaturgia própria porque, na época, não existia um texto que pudesse atender a um discurso contemporâneo sobre a situação do negro na sociedade brasileira.

OM2ªATO - O que naquela época precisava ser dito?
CC -
Olha... primeiro: a valorização da cultura negra. Nós tínhamos pouquíssimos atores negros, isso na Bahia, com uma população 80% negra e, 1% de público negro no teatro. Imagina aqui em São Paulo: piorou! E isso porque o negro não se via representado naquele teatro feito na Bahia, e você tem que se ver! Por isso, não comparecia. Hoje, nosso público é muito mais negro que o público habitual do teatro.


OM2ªATO – O que é ser artista pra você?
CC -
Ser artista é acima de tudo estar a serviço de algo que tem que ser dito, não é só um exercício narcisista, né...de estar em cena. Tanto é que sou atriz, mas, em um determinado momento foi mais importante pra mim ser diretora ou, produtora do Bando, ou administradora, enfim, o que fosse necessário para deixar nosso discurso em cena. Então, acabou que eu não escolhi fazer o Bando, o Bando de alguma maneira veio pra mim, e eu fui vivendo o Bando porque o Bando realmente atende a um público que quer aquele discurso, que quer ver aquilo em cena porque aquele teatro é necessário!


OM2ªATO - Falar sobre a realidade do negro muitas vezes agride o branco. Você mesma hoje, já se referiu ao Bando como “xiitas”, rs. O Bando agride?
CC –
Olha, já teve quem disse ter se sentido agredido ao ver, por exemplo, “Cabaré da RRRRRRaça”. Mas, assim: eu entendo que agrida, mas, a pessoa tem que entender que se aquilo é dito é porque é necessário. Se aquelas pessoas disseram é porque tiveram a necessidade de falar aquilo, e os pontos de vista tem que ser ouvidos por todos. Nossa Companhia tem essa função, de colocar os cérebros pra refletir...indagar, questionar, denunciar. E olha que a atenção que nós chamamos ainda não é o suficiente, nós ainda temos um papel meio que de formigas. Quando nós chegamos a Angola e falamos pra eles que 80% da população da Bahia era negra, eles não acreditaram. Por quê? Porque as produções da Globo que passaram e que passam lá..., mostram um Brasil branco. Então, quer dizer, a televisão brasileira ainda não é um reflexo da nossa população, é só um reflexo da população dominante.

OM2ªATO - Qual o papel do ator negro na sociedade?
CC -
Eu penso que vão te oferecer um papel, uma coisa que seja degradante...você vai ter que dizer: “Não! Não tô a fim porque essa imagem já está muito reforçada”. O artista tem que ter consciência do seu discurso. A gente não é uma massa de modelar, a gente tem que ter uma posição. Seu personagem pode ser até equivocado, mas, o seu discurso geral, não pode. Essa será sua luta cotidiana.


OM2ªATO - O Bando faz um trabalho voltado à sociedade carente. Conta pra gente isso.
CC -
Nós abrimos espaço para a inclusão e muito debate. A gente promove fóruns de discussão, muitos seminários, trazemos gente pra falar com a gente e a comunidade, além das oficinas... Então, quando você sai do Bando, sai com outra posição...você sai e já é dono do seu discurso. E é muito importante ser dono do seu discurso porque senão, você é destruído..., e a vida te destrói se você não sabe exatamente porque você veio. Então, o importante é ver que nossos artistas, quando se desvinculam do Bando, saem sabendo pra que vieram e o que querem cada um na sua trajetória.

“Quando chegamos a Angola e falamos pra eles que 80% da população da Bahia era negra, eles não acreditaram. Por quê? Porque as produções da Globo que passaram e que passam lá, mostram um Brasil branco”
Saiba mais sobre o Bando
teatrovilavelha.com.br

Leia

Livro: Abdias Nascimento
Autora: Sandra Almada
Editora: Selo Negro Edições
2009

Livro:
Dramas para Negros e prólogos para brancos
Autor: Abdias Nascimento
Edição do Teatro Experimental do Negro
Rio de Janeiro, 1961

Da Vila a ABL. Martinho, o escritor

Por Janaína Gomes e Nabor Jr.
Martinho José Ferreira, ou simplesmente Martinho da Vila, da mais charmosa Vila do carnaval carioca, a alviceleste Vila Isabel, apesar da fala mansa e do andar cadenciado, pertence àquele grupo de artistas que não se contentam em ser prisioneiros de uma única plataforma de produção, como, por exemplo, o cantor, compositor e pintor Heitor dos Prazeres (1898-1966), ou mesmo o poeta, folclorista, ator e também pintor Solano Trindade (1908-1974), que vêem no fazer artístico um caldeirão de possibilidades para expansão de suas inquietudes.

Figura de raro talento e inventividade, dada a robustez de sua obra, Martinho rompe, mesmo que involuntariamente, com todos os rótulos e estereótipos que lhe possam ser atribuídos.

Suas contribuições para o resgate e valorização de uma identidade cultural genuinamente afro-brasileira são intermináveis. Nas décadas de 80 e 90, por exemplo, promoveu os Encontros Internacionais de Arte Negra (batizados de Kizomba), que trouxeram ao Brasil artistas de países como Angola, Moçambique, Nigéria, Congo, Guiana Francesa, Estados Unidos e África do Sul. Em 2000, realizou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em parceria com o maestro Leonardo Bruno, o projeto Concerto Negro, um espetáculo sobre a participação da cultura negra na música erudita.
Contudo, mais relevante do que os cerca de 50 discos lançados, as centenas de composições e os títulos com sambas-enredos, é a qualidade da vasta obra deste carioca de 72 anos, natural de Duas Barras. Seja como sambista, cantor, compositor, puxador de samba, pesquisador e intelectual, está sendo assim como escritor. Isso mesmo, escritor!

Se musicalmente falando Martinho da Vila dispensa apresentações (já foi, por exemplo, um dos maiores vendedores de disco no Brasil e segundo sambista a ultrapassar a marca de um milhão de cópias vendidas com o CD Tá Delícia, Tá Gostoso, lançado em 1995), sua carreira como escritor, oficialmente inaugurada em 1986, com o livro infanto-juvenil “Vamos Brincar de política?”, parece estar preste a se tornar popular, bem como suas canções.

Autor de 10 livros, entre infanto-juvenis, romances e relatos biográficos, Martinho, por força da sua obra literária, é um dos postulantes a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Já que após a morte do bibliófilo José Mindlin, falecido em fevereiro deste ano, uma vaga foi aberta. Além do artista, que há algum tempo começou a frequentar os chás que acontecem todas as quintas-feiras na sede da ABL, no Rio de Janeiro, levando o batuque aos acadêmicos, alguns deles seus amigos, que o incentivaram a se candidatar, também são cotados para assumir o posto o ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau; o poeta, ensaísta, tradutor e diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti e o presidente da Biblioteca Nacional, Muniz Sodré.
Apesar de ter o “apoio” do presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça, que busca tornar a casa mais próxima do mundo real, Martinho corre por fora na disputa. Segundo fontes próximas ao sambista, ele se diz desconfortável em fazer a corte e mal sabe quem são seus adversários. Em recente entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo ele declarou que só irá à academia se o quiserem lá. “Não vou fazer muita coisa. Tenho um amigo que cumpriu todo o roteiro, fez uns 15 jantares, e não se elegeu”, disse.

O fato é que, com os méritos de quem busca preservar as influências afro na formação da identidade cultural do povo brasileiro, os holofotes da sua carreira artística finalmente estão se voltando a sua faceta literária. Abrindo caminho para que o público possa, em fim, conhecê-la. Se for aceito na ABL, como ele próprio afirmou “músicos, sambistas, gente da favela, entre outros, se sentirão representados”.

E ele tem razão, fundada em 20 de julho de 1897 por nomes como Machado de Assis (mulato), José do Patrocínio (negro) e Silvio Romero (abolicionista), a ABL, mesmo sendo para muitos cada vez mais uma casa de notáveis do que de grandes escritores e desfrutando de um prestígio duvidoso (principalmente após incluir em seu quadro nomes contestados tanto por escritores como pelo público em geral, como o do ex-presidente José Sarney, do cirurgião plástico Ivo Pitanguy e do escritor Paulo Coelho), a instituição segue como a principal morada do cultivo da língua e da literatura nacional. Ter novamente o colorido e o balanço de um negro no seu atual quadro de imortais seria um estímulo para os escritores negros e uma honra para ABL.

Conheça a lista com os 10 livros já publicados pelo escritor:

Vamos Brincar de política?
Editora Global, 1986
Infanto-juvenil

Kizombas, andanças e festanças
Editora Record, 1998
Auto Biográfico

Joana e Joanes, um romance fluminense
ZFM Editora, 1999
Romance

Ópera Negra
Editora Global, 2001
Ficção

Memórias póstumas de Teresa de Jesus
Editora Ciência Moderna, 2002
Romance

Os Lusófonos
Editora Ciência Moderna, 2006
Romance

Vermelho 17
ZFM Editora, 2007
Romance

A Rosa Vermelha e o Cravo Branco
Lazuli Editora, 2008
Infantil

A serra do rola-moça
ZFM Editora, 2009
Romance

A rainha da bateria
Lazuli Editora, 2009
Infantil

Click:
martinhodavila.com.br

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Vim, vi e venci. Vitché!

Por Janaína Gomes e Nabor Jr.



Fragmentos da plástica e da magia do circo transportados para um universo sombrio e lúdico, onde o vermelho, o preto, o branco e o prata dialogam para transmitir sentimentos como ódio, amor, paz e escuridão.

Essa é apenas uma das facetas da peculiar obra do grafiteiro, ilustrador, escultor e pintor de diversos suportes, Victhé. Paulistano do bairro do Cambuci, contemporâneo dos Gêmeos, o artista, que começou seu trabalho nos anos 80, hoje, já da veia, é um dos principais precursores do graffiti no país. Com trabalhos expostos no Brasil, Estados Unidos, América Latina e Europa, em locais como a conceituada Fundação Cartier, em Paris, Victhé começou sua carreira rabiscando de giz o asfalto das ruas do Cambuci. Pra tudo tem um começo!

Nome
Vicente Rodriguez Mora. Sou filho de imigrantes espanhóis.

Porque Vitché?
Desde muito cedo já brinco na rua e, aproximadamente, com cinco pra seis anos me deram este apelido que veio naturalmente pelo meu verdadeiro nome .

Idade
Nasci em julho de 69. É muito legal completar 40 anos justo com Woodstock e a ida do homem a lua .

Onde nasceu e onde cresceu
Em um bairro mágico chamado Cambuci, no Centro de São Paulo

Lembra-se como foi fazer, quando e onde fez seu primeiro graffiti?
Na verdade foi muito natural. Foi meio que brincando, tinha 10 anos e pintei minha primeira parede com o resto de tinta que usávamos para fazer o campinho de futebol na rua onde moro até hoje .


Como está sua relação com as ruas hoje. Continua pintando por aí pra se divertir?
Sim eu gosto de pintar e a rua sempre te ensina alguma coisa diferente. Mas, hoje, sei que posso me divertir de várias maneiras, como fazendo uma escultura, conhecendo novos materiais ou técnicas, mas a rua tem algo realmente especial .

Reparamos no seu trabalho um gosto pelo lúdico (sonho), pelo uso freqüente de cores quentes, como o vermelho, por exemplo e, por vezes, traços que remetem ao universo circense. Explique um pouco do seu trabalho, inspirações e referências.
Na verdade procuro ter um equilíbrio no meu trabalho. Algo entre o sonho e a realidade. Hoje também tenho muitas inspirações nos antepassados e nos povos que já passaram pelo planeta . Gosto também do lúdico como uma forma de sonhar, para mim o sonho e a realidade caminham lado a lado. O divertido é não se deixar cair da corda bamba .

Porque os olhos são tão expressivos na sua obra? O que eles querem dizer?
Os olhos são como um estado de sensibilidade e consciência, principalmente pelo que vem acontecendo com o planeta, como os desmatamentos, as queimadas, a extinção de espécies e a falta de visão da grande maioria dos homens. Para que direção esta o verdadeiro progresso já que não conseguimos muitas vezes respeitar o planeta aonde moramos?


Como foi a transição das ruas e telas para as esculturas e ilustrações? Foi uma evolução natural do seu trabalho? Em que plataforma se sente melhor?
Me sinto bem em todas as formas de expressão. Vejo tudo isso como maneiras de se comunicar e eu realmente me preocupo mais no que vou dizer. É como falar inglês, alemão ou francês, são como técnicas , a transição e a evolução foi natural mais acho que a essência sempre foi a mesma .

Você já expôs na Fundação Cartier, em Paris, além de museus na República Tcheca e na Alemanha, por exemplo. Porque os gringos gostam tanto dos artistas de rua do Brasil?
No mundo existem muitos artistas bons, mas o melhor de tudo isso e que hoje o Brasil esta no mapa e também pode mostrar seu estilo. O que é muito bom .

Você trabalha muito com madeira, tem um discurso de resgate do verde nas grandes cidades e tal. Como é o seu trabalho neste sentido?
Na verdade me preocupo muito com o planeta. Vivo no centro de uma grande cidade mal planejada e com pouco verde. Considero a natureza muito importante para nossa vida . Uso madeiras que encontro na rua para fazer as esculturas porque sei que elas um dia foram uma árvore e tento resgatar um pouco da energia que sei que esses pequenos pedaços de madeira ainda tem, mas na verdade tudo é como um grito para que essa falta de consciência pare e que possamos abrir os olhos antes que eles não possam mais serem abertos .



Click
fondation.cartier.com

Assista
DVD 100Comédia
Autores: Djan (Cripta), João Wainer e Roberto Oliveira
Barry McGee

Mulher, negra e artista: a estética crítica de Rosana Paulino

Texto: Alexandre Bispo e Nabor Jr.

Além dos seus textos e montagens cênicas, o poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898 – 1956), cujos trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, também ficou conhecido por seus poemas marxistas. Em um deles, conhecido como o Analfabeto Político, Brecht condena as pessoas que se orgulham de odiarem e desconhecerem Política. Já que para ele, somos todos políticos, mesmo quando achamos que não.
Em parte, a afirmação faz sentido. Afinal, se por um lado ignorar a política pode ser uma forma de criticá-la, ao mesmo tempo é quase impossível permanecermos indiferentes a ela.

No Brasil, situação semelhante ocorre com as discussões envolvendo gênero, raça e etnia. Apesar de onipresentes no cotidiano de uma sociedade miscigenada como a nossa esses temas seguem como coadjuvantes nas reivindicações de uma população que, em sua maioria, é carente de uma formação intelectual e crítica mais aguda.


Assim, unindo o discurso á plástica e utilizando plataformas ditas “mais digestíveis” para a compreensão popular, muitos brasileiros (na música temos, por exemplo, o Rap dos Racionais MC´s; na literatura, as obras de Nei Lopes e no teatro “Os crespos” ) procuram, senão abrir os olhos da população, ao menos fazer com que temas políticos e raciais venham à tona e sejam introduzidos na pauta de discussões da sociedade.

Neste sentido destaca-se o trabalho desenvolvido pela artista plástica paulistana Rosana Paulino, graduada em Artes Plásticas pela ECA/ USP, especialista em gravura pelo London PrintStudio e que em entrevista ao OM2ªATO, afirmou detestar ser definida como uma artista engajada. “No meu caso é uma coisa que nasce de fora para dentro, questiono constantemente meu lugar – e o lugar dos meus – no mundo. Não nasce de algo que vem de fora, é a minha própria essência”, diz.
Solidária à dimensão social e política da história do Brasil, Paulino, que já realizou diversas exposições tanto no Brasil como no exterior, atualmente é doutoranda em Poéticas Visuais pela ECA, não submete em sua obra à plástica ao discurso crítico, pelo contrário, explora a história do país e a atualidade de algumas práticas construindo imagens fortes que criticam a manutenção do sistema de desigualdades mantidos em muitos gestos, as vezes silenciosos e muitas vezes indiscretos nas propagandas, no consumo desenfreado, na ansiedade de não corresponder às expectativas entre o ser e o parecer.





Desde o início de sua carreira, Rosana, nascida na cidade de São Paulo, onde atualmente vive e trabalha, vem se destacando por sua produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero, tendo como foco principal a posição histórica da mulher negra na sociedade brasileira. “Minha infância está presente em meus trabalhos. Fatos como se perceber negra e não ter nenhuma boneca com a qual pudesse me identificar olhar as heroínas e princesas e ver que entre elas não havia nenhuma negra, as famílias nos comerciais e livros escolares, tudo isto foi chamando minha atenção e me levando a discutir o motivo desta invisibilidade negra”, diz.

No livro Manobras Radicais (2006), os autores Paulo Herkenhoff e Heloisa Buarque de Holanda, afirmam que: “Certa parte da obra de Rosana Paulino trabalha o sistema de arte como uma espécie de gargalheira que constrange os movimentos de expressão da mulher negra”.

A constatação pode ser verificada em trabalhos como a série Bastidores (1996/1997) onde, para refletir sobre a violência doméstica contra mulheres, a artista reúne a fotografia sobre tecido a uma tarefa bastante feminina: o bordado, que é utilizado para denunciar o “nó na garganta” a impossibilidade de falar, de ver ou, no limite, apontar a privação dos sentidos causada pela violência.

Aliás, a utilização de materiais e imagens tradicionalmente ligados ao universo feminino, tais como linhas, tecidos, cabelos artificiais, silhuetas recortadas de mulheres que lembram antigos trabalhos manuais, são uma constante nos trabalhos em que a artista investiga a situação social da mulher negra no Brasil.

Em O Baile (2004), por exemplo, Paulino desmonta o mito da festa de debutantes, situação que exaltaria a brancura, os cabelos lisos e nos apresenta uma situação constrangedora por qual passam as meninas negras quando diante tal questionamento. Nessa operação ela constrói uma produção que revela os sofrimentos decorrentes da frustração da menina negra em não conseguir se adequar ao modelo de beleza oficial.

Em Amas-de-Leite (2008), momento em que repensa o papel estruturante dessas mulheres no processo civilizador brasileiro, temos a denúncia da ausência de interesse de grande maioria dos artistas contemporâneos brasileiros em fazer um trabalho que reveja temas históricos ou que se inspirem ao universo da cultura popular.

Das muitas artistas mulheres na historia das artes visuais, poucas ou, até bem pouco tempo nenhuma delas, eram negras. Nesse contexto, a produção de Paulino não só vai dar um salto na medida que, como negra ela se diz a si própria, isto é, não é objeto de inspiração (uma boa comparação é o quadro A Negra, de Tarsila do Amaral), mas vai reinterpretar a história dos lugares sociais da mulher negra no Brasil.

A mulher negra é verdade, foi, nas primeiras décadas do século XX, objeto de representação para artistas como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre muitos outros, mas não foi ela própria que se auto representou. Temos em Rosana essa voz plasticamente forte que não só se diz, mas revê os estereótipos históricos a partir de um apuro técnico e cuidado plástico que não limitam seu trabalho a um engajamento que ilustraria uma posição política. Ela, ao contrário, vai muito mais longe ao se mostrar solidária às constantes investidas que pretendem desprestigiar a mulher negra e sua imensa participação no processo civilizador brasileiro. Ao revelar esses lugares de subalternidade ela põe sua produção no circuito das artes reforçando sua consciência política sem abrir da delicadeza que envolve ser uma mulher, negra e artista.
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ALGUMAS EXPOSIÇÕES DAS QUAIS PARTICIPOU
. Panorama dos Panoramas (Museu de Arte Moderna de SP/ 2008)
. Projeto TOLDOS (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal/ 2008)
. Mulheres Artista/Olhares Contemporâneos (MAC-USP/ 2007)
. Encontro Entre Mares - Bienal de Valência (Espanha/ 2007)
. Manobras Radicais (Centro Cultural Banco do Brasil, SP/ 2006)
. Colônia (Galeria Virgílio – SP/ 2006)
. Paixão (Mostra de inauguração do Museu Bispo do Rosário - Jacarepaguá, RJ/ 2006)
. Trienal Poli/Gráfica de San Juan: América Latina y el Caribe (San Juan, Porto Rico/ 2004)
. Mostra de abertura do Museu AfroBrasil (Museu AfroBrasil – SP/ 2004)


CLICK
rosanapaulino.blogspot.com
museuafrobrasil.com.br


LEIA
Livro: Manobras Radicais
Autores: Paulo Herkenhoff e Heloisa Buarque de Holanda
Editora: CCBB/ SP
São Paulo, 2006

Livro: Yedamaria
Autor: Editora Imesp Editora:Imprensa OficialSão Paulo, 2006
Livro: Novíssima arte brasileira - um guia de tendências
Autor: Kátia Canton
Editora: Editora Iluminuras/FAPESP
São Paulo, 2000

Livro: Heitor dos Prazeres – sua arte e seu tempo
Autora: Alba Lírio e Heitor dos Prazeres Filho
Editora: ND Comunicação
Rio de Janeiro, 2004